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sábado, 21 de novembro de 2015

Hemingway e O Fim de Alguma Coisa

Conversava com um amigo por esses dias sobre a armadilha que é inserir numa obra de ficção os famigerados 'panos de fundo', contextos sociais ou históricos que emolduram ou refletem e até mesmo comentam intrigas pessoais, menores. Muitas vezes o primeiro acaba por sufocar o segundo ou, sacrilégio supremo, o autor periga usar o contexto histórico como rubrica pessoal e acaba por congestionar o enredo com impressões pessoais que invariavelmente não servem a nada senão como autoindulgencia.

Um mestre como Ernest Hemingway fazia isso como tem que ser: a exposição de um ambiente acaba por retratar o psicológico dos personagens, e isso ecoa no leitor de maneira que a mescla se torna indissociável. Em "O Fim de Alguma Coisa", conto parte da antologia "As Aventuras de Nick Adams" (Tradução de Hélio Pólvora, Editora Artenova, 1973, p.176-180) o autor faz uso brilhante da ambientação para ilustrar o espaço psicológico de dois personagens que pouco falam, mas sabem que um romance está chegando ao fim. A decadência comercial da cidade madeireira Hortons Bay faz o contraponto perfeito , pano de fundo certeiro ao romance em vias de extinção de Nick Adams e Marjorie.

Utilizando o conto de atmosfera para mergulhar o leitor no drama dos personagens, Hemingway enche o texto de metáforas potentes e melancólicas, sugerindo o desmoronamento de um relacionamento conturbado. É como se a dissolução do espaço físico de uma cidade ou país refletisse a decadência moral do fim de um romance. Em dado momento, os dois jovens estão preparando iscas para a captura de peixes, mas a melancolia de Nick já denota a desconexão com a parceira, que o nota distante e estranho, até o momento em que o mesmo sentencia uma série de frases cortantes, encerrando o conto com grande dose de amargura e revelando o que se passa em sua cabeça. Hemingway revela, afinal, a desesperança como unidade de efeito.

Nick Adams fita Marjorie intensamente e dispara: " -Deixou de ser divertido. Nem mesmo um pouquinho. Sinto-me como se tudo dentro de mim tivesse virado um inferno. Não sei Marge, não sei o que dizer."

Ela retruca: " -O amor não é divertido?"

Ele sela o destino deles e do conto:

"- Não."


Segue o conto, na íntegra. Clique para expandir as páginas:




quinta-feira, 5 de novembro de 2015

007 Contra Spectre (Spectre, UK/EUA, 150min. Dir. Sam Mendes)

James Bond sabe que a única alternativa viável  em um mundo de loucos fingindo-se de adultos é a atitude delinquente, a bazófia diante do tédio e do perigo. O escapismo proposto durante as missões sempre tortuosas e violentas cumpridas pelo agente é a piscadela de olho definitiva para o espectador; a confirmação da crença de que tudo aquilo é um pouco demais e portanto exige bom humor. Saímos do cinema auto-confiantes e realizados em nossas fantasias mais absurdas. Nenhum manual de auto-ajuda é tão eficiente e cruelmente eficaz em sugerir que sim, todos os problemas serão resolvidos se mantivermos um saudável ar arrogante e sacarmos de bate-e-pronto a frase de efeito irônica correta, mesmo correndo risco de vida, sob tortura até. De quebra, no final o mundo está salvo e você ganha o carro mais bacana e a garota mais linda do pedaço. Não tem como dar errado.  

Seguindo essa fórmula, "007 Contra Spectre" confirma a chegada do Bond de Daniel Craig à idade adulta, com todos os percalços e convenhamos, chatices, porque envelhecer já é um saco, imagine para James Bond. Mas o agente parece estar lidando muito bem, obrigado, com sua bem-vinda maturidade. 

Se em sua primeira incursão pelo mundo da espionagem lhe valendo a insígnia 00 e a licença para matar no já clássico "Casino Royale" Bond descobria um mundo de oportunidades que se descortinavam à medida em que enfrentava o perigo com o descuido e abandono inerente aos adolescentes, muitas vezes com consequências desastrosas (vide a morte do primeiro amor, Vesper Lynd) , em "Quantum of Solace" ele enfrentou o amargor, a ressaca da festa. Descobriu uma conspiração maior do que jamais poderia supor, e já ficava claro que o amor nunca mais voltaria a dar as caras. "Skyfall" foi o movimento decisivo para o fim da juventude do personagem: perdeu a figura feminina que o compreendia de verdade. "M", a mãe. Judi Dench, a mãe definitiva, a única mãe possível, capaz de  esculachar Bond à vontade, com muita propriedade. Ao final do filme, ganha um chefe homem, e ali já se institui uma relação de camaradagem cujo único objetivo é o trabalho. A frase final de "Skyfall" é sintomática: "007 se apresentando para o dever".

E se em "Spectre" James Bond parece um pouco mais mecânico e sem qualquer tipo de envolvimento, até quando a pendenga chega as raias do confronto familiar (não conto mais nada porque vira spoiler), é porque ser adulto é isso aí mesmo. E eu achei esse desenvolvimento do personagem perfeito, irretocável. Agora, se isso não agrada ao espectador que cobra do personagem algo diferente, sinto muito, estava claro que tudo ia por esse caminho. O cara é a máquina de matar mais fria da Inglaterra, perdeu absolutamente tudo de mais importante em sua vida, abriu mão de convívio social há tempos e usa uma armadura de ironia que o blinda ante as decepções que o mundo lhe impõe. De "Casino Royale" até agora, presenciamos a formação de um sociopata, o melhor de todos, trabalhando ao lado dos mocinhos do MI6. Uma dose de estilo ajuda a disfarçar, mas pessoal, o cara é um assassino, não há como escapar disso.

Apresentando essa eficiência quase doentia de tão impecável agora consolidada, Bond vai de cena em cena de ação (todas incríveis e muito competentes, cortesia da parceria do diretor Sam Mendes com um dos melhores diretores de segunda unidade do mundo, Alexander Witt) disparando frases cortantes, cortejando as mulheres mais bonitas do cinema (Monica Bellucci e Naomie Harris me perdoem, mas Léa Seydoux é a mulher mais linda a ser bond girl em muito tempo, rouba todas as cenas) e finalmente entendendo seu destino, sua parte no jogo montado por Oberhauser (Christoph Waltz deitando e rolando, sendo Christoph Waltz), chefe da SPECTRE, a grande organização criminosa por trás de todo seu sofrimento e tormentos enfrentados nos filmes anteriores.

Justamente por dessa vez ter consciência plena do seu papel num esquema maior das coisas é que Bond finalmente corre sem amarras, fazendo o que quer, quando e como quer, sem ligar para a lógica ou para a caretice reinante. À certa altura do filme, um bartender lhe oferece um drink saudável, sem álcool, daqueles 'detox' tão em voga nos dias de hoje. A resposta de Bond para o pobre rapaz é tão engraçada e espirituosa que não vou revelar aqui, mas sinaliza a mentalidade do personagem e vai deixar muita gente politicamente correta com o queixo no chão. É refrescante um sujeito que carrega tamanha responsabilidade com tamanho grau de insolência no cinema atual.

No fim das contas, 007 é um tipo de filme que coloca um espelho na frente de quem assiste: os reclamões da inverosimilhança para com uma suposta 'realidade' são os mais ofendidos e portanto, engraçados: não conseguem admitir um cara com mais de 40 anos se divertindo tanto por mais de duas horas e cometendo as maiores barbaridades sem perder as abotoaduras do terno. Eu entendo isso.

Mas aqueles pertencentes a uma massa que neste final de semana vai lotar os cinemas do mundo todo, cuja qual faço parte, vai passar mais de duas horas assistindo um filmaço, vai voltar revitalizada para essa vida mundana chata e sem desafios cinematográficos e vai concluir que o legal mesmo é chegar aos 40 e tantos como James Bond, um adulto que bota pra quebrar, dirige o carro mais legal, derrota o vilão e ainda ganha a garota mais bonita. Essa é uma meta muitíssimo mais digna para ser alcançada do que escolher o filtro do instagram ou verificar no noticiário a última do Eduardo Cunha. O mundo agradece a visita, e as lições de boas maneiras de James Bond.