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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, dir. Martin Scorsese, EUA, 2014, 180 min.)

Direto e reto: nada poderia me preparar para a maravilha de filme que é "O Lobo de Wall Street". Afundando o pé no acelerador por três horas memoráveis e que passam como um raio, ele, Martin Scorsese, o cineasta no topo da cadeia cinematográfica norte-americana, entrega um filme urgente e com frescor de moleque, um pé bem dado no saco do politicamente correto jamais pedindo desculpas, ao mesmo tempo em que nunca perde de vista o cerne moral da história que quer contar.

E é um filme tão grandioso e cheio de pequenos detalhes que apenas uma visita ao cinema não faz jus à grandiosidade e ao alcance de seus significados. É sobre um correntista, Jordan Belfort, que se tornou o maior vendedor de ações da história dos EUA ilegalmente e extorquiu, roubou, manipulou, consumiu quantidades gargantuescas de drogas legais e ilegais; foi preso por todo tipo de estelionato possível praticado contra seus próprios colegas e compradores de ações. Ainda assim, saiu da prisão com status de guru motivacional e escreveu a história toda, aqui adaptada pelo superlativo Terence Winter, roteirista de "Família Soprano".

Leonardo DiCaprio está no auge de sua carreira, sob a batuta do seu mentor. Este é o papel de sua vida. Ele está perfeito em cada fotograma e nos conduz durante 180 minutos de filme. Nunca deixa de ser genial. Repulsivo, enojante, amoral e corrompido sim, mas não menos carismático. O elenco é espetacular e não deixa espaço para mediocridade: Jonah Hill, Rob Reiner, Margot Robbie, Matthew Mc Conaughey numa ponta espetacular, Kyle Chandler, Jean Dujardin, Joanna Lumley, Kenneth Choi, P.J.Byrne, Henry Zebrowski, Brian Sacca, Ethan Suplee , Bo Dietl...eu não quero deixar ninguém de fora.

Tematicamente, a proeza realizada pelo autor e sua equipe é contextualizar esse filme dentro de sua obra. Dentro do seu interesse, da sua temática. A batalha travada por imigrantes italianos, irlandeses, poloneses, de classe média baixa, rumo à uma vida melhor, ou ao menos mais relevante. A história da vida e dos pais de Scorsese. A culpa católica, a pressão divina por aquilo que parece certo ou errado e a penalidade gerada pelo pecado. A busca por transcender limites de uma vida banal carregada de mediocridade, mesmo que isso lhe leve ao caminho ético oposto. E a alegria adolescente de se levar uma vida irresponsável de transgressões (me vem à mente o Henry Hill defendido com brilhantismo por Ray Liotta em "Os Bons Companheiros" dizendo que o trabalho das 9 às 5 da tarde, 7 dias por semana, é coisa para os idiotas), novamente cobrando um preço caro demais para se pagar.

Existe um momento sublime em "O Lobo de Wall Street" que é quando Belfort (Di Caprio) está num restaurante americano típico, uma lanchonete frequentada por todo tipo de 'blue collar guys', a classe trabalhadora que luta por um horizonte mais plausível. Ele está numa mesa rodeado por descendentes de orientais, italianos, poloneses, irlandeses. Essa é a sua futura equipe. Esses são os excluídos do sonho americano, buscando pela porta dos fundos a entrada triunfal através do dinheiro e reconhecimento. Eles não querem o conforto de um trabalho medíocre. Não tem muito estudo e mesmo conceito de moral alguma. Belfort e sua gangue querem muito dinheiro, pelos métodos que forem necessários. Não existe sinal de escrúpulo, de decência. Mas ao mesmo tempo Scorsese direciona um olhar cristão, piedoso, à essa galeria de transgressores, de perdedores. A cena evolui, conduzida formidavelmente e ao fundo ouve-se uma canção de Billy Joel, escrita em 1977, chamada "Movin Out":                                    

                                         

Segundo Billy Joel, em suas próprias palavras, a canção é 'sobre cada imigrante irlandês, polonês e italiano tentando ganhar a vida na América'. Basicamente a letra versa sobre o desgosto do artista com as aspirações levianas da classe média baixa, que trabalha incessantemente perseguindo uma vida burguesa, para emitir sinais à sociedade de que conseguiu se dar bem, ao menos economicamente. Joel comenta com ironia e alguma raiva essa rejeição das raízes operárias. A letra prossegue, proclamando que ao final dessa vida vazia, as recompensas podem muito bem ser um 'ataque cardíaco' ou uma 'hérnia de disco'. O refrão surge majestoso, uma mudança de ritmo melancólica em que o cantor dá a cartada final:


               " It seems such a waste of time                           ( Parece uma enorme perda de tempo)

                 If that's what it's all about                                     (Se é apenas isso que tudo significa)
                 Mama, if that's movin 'up, i'm movin' out  (Mãe, se isso é ascensão, estou caindo fora)"
  
E voltamos ao filme, onde a canção acaba de funcionar perfeitamente como comentário e contraponto a história contada, ajudando a inserir esse conto sobre excessos nas obsessões temáticas de Scorsese. Eu sinceramente não consigo imaginar um encontro recente mais feliz de forma e conteúdo, de música e imagem trabalhando em total sintonia para ilustrar uma visão de mundo tão afiada, tão precisa. A canção pop aqui não funciona como mero acessório estilístico, ela se torna parte efetiva do conteúdo da cena.


O momento atual e o colapso do liberalismo frágil e brilhante é o legado que Martin Scorsese nos deixa ao final de "O Lobo de Wall Street".Sonhos de ter tudo, agora, se foram; o filme acaba com uma cena sobre compromisso e responsabilidade sobre o que você quer, talvez uma celebração do aprendizado de levar apenas o que você pode levar, talvez uma ilusão do que você merece, porque o tempo passou, e as regras mudaram. Há algum tempo o diretor faz parte da aristocracia da cultura popular, mas esse filme nos lembra que ele lutou exatamente pelo que queria, e conseguiu. Isso há quase quarenta anos atrás. E ele sabe melhor do que qualquer um que ninguém pode viver de uma memória, uma memória daquela sensação de domínio que o tomou quando? em 72? em 1976? 



Ilustrando essa passagem de tempo e as consequentes transformações, existe um diálogo fenomenal, entre uma tia da esposa de Belfort e o próprio, quando este vai à Inglaterra visitá-la para discretamente pedir sua ajuda num esquema internacional de lavagem de dinheiro. A personagem da tia, interpretada por Joanna Lumley, está na terceira idade, mas não seus olhos, sua percepção. De alguma forma, ela reconhece o personagem de Di Caprio com simpatia e porque não, condescendência. Ele reconhece nela vivacidade, vontade de vida, luxúria e talvez um passado de excessos. E ela devolve tudo num olhar compreensivo que não julga o turbilhão que se passa na cabeça do jovem empresário. Enquanto ele tenta justificar para a velha senhora seus vícios e descalabros e até mesmo seduzi-la com um flerte descabido, ela o interrompe e diz: 



'- Meu jovem, calma. Temos nossas responsabilidades. Cuide de minha sobrinha, e eu cuido do que você me pediu.'



E é claro, Belfort/Di Caprio dá de ombros para a responsabilidade e volta para a festa, sem escalas.



Esse recorte geracional de reconhecimento e fuga dos modelos de responsabilidade é uma adição aos temas abordados por Scorsese. Trocando em miúdos, sua visão moralista e reprovadora do comportamento de Jordan Belfort que se concretiza ao final do filme não passa sem o reconhecimento dos seus excessos de jovem. Pois o próprio diretor já reconheceu céu e inferno em sua vida particular e sabe encarar com sobriedade e distanciamento os dois. Esse chamado de responsabilidade, que vem após a festa, se abate sob o personagem principal apenas no final de sua via-crúcis napoleônica. Não há mais tempo. O filme acelera. A vida alcança Jordan Belfort, e ele pagará pelo que fez.



Em "O Lobo de Wall Street" você pode encontrar todas as facetas que o cinema de Martin Scorsese já encarnou - o questionamento do perdão, a criminalidade rebelde, a busca por um herói num mundo corrompido e claro, os cavaleiros da vida acelerada - por quase quatro décadas. Mas no fim existe o verdadeiro aceno para os anos 2000 - mais difíceis de engolir, um vinho bem mais forte. "O Lobo de Wall Street" não encontra eco nos filmes de máfia, a comparação mais óbvia. Ecoa muito mais forte em "Taxi Driver": ambos são filmes que não pretendem mais dominar as pessoas, mas buscam um domínio incerto sobre as situações bem mais desesperadoras que os anos por vir estão prestes a impor.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Robocop (Dir. José Padilha, EUA, 2014, 117min.)

O primeiro "Robocop" foi dirigido por Paul Verhoeven em 1987 e hoje ainda é influencial para minha geração. Fez parte de um pacote da cultura pop que incluiu "O Cavaleiro das Trevas" de Frank Miller e "Watchmen" de Alan Moore nas HQs. Revisões no mito do herói muito bem-vindas, executadas por autores completamente cientes do que estavam fazendo: estocadas irônicas na 'Era Reagan', no perigo do fascismo pelas mãos dos vigilantes.

Corta para 2014 e José Padilha é um cara muito ciente do que está fazendo. Tem visão clara sobre os temas que aborda e consegue entregar a encomenda direitinho. Seus "Tropa de Elite" tem o equilíbrio perfeito entre denúncia social com tintas de documentário e o thriller policial de procedimento. Esse estilo e garra trouxeram ele até esta refilmagem. Uma visão invulgar, denotando responsabilidade para com o material original e com a legião de fãs ávida (e transtornada) desde que a primeira foto do robô caiu na internet.

Exagero. Padilha e seu roteirista Joshua Zetumer pegaram do original apenas o conceito: um policial assassinado brutalmente transformado num ciborgue e vendido por uma grande corporação à população como a resolução do caos urbano, enquanto alivia a barra de políticos corruptos e força policial cada vez mais enfraquecida e desacreditada. É fácil ver porque o diretor abraçou esse material com tanta voracidade. É o cenário de "Tropa de Elite" extrapolado para a ficção-científica americana, o que permitiu a ele incluir muito bem-vindas sacaneadas no atual status quo da política externa americana, bem como o militarismo exacerbado apoiado pela mídia de direita alá Fox News e a cada vez maior possibilidade das máquinas assumirem o comando no front de guerra, via drones e outros meios de controle tático.

Daí ser desigual a comparação com o filme de 87. O 'zeitgeist' agora é outro e o personagem e sua jornada de herói são inseridos nesse novo contexto. Isso significa uma miríade de subtextos, pontos de vista e camadas que resultam num filme razoavelmente complexo, acima da média do material lançado no gênero ultimamente. Nos anos 80, época em que a política e as forças armadas se levavam cada vez mais a sério nos EUA, Verhoeven sabia que a única maneira de fazer um comentário realmente relevante seria esculachando, exagerando, apelando para a sátira de tintas fortes. Hoje vivemos um tempo em que qualquer sátira empalidece diante da corrupção do Estado, que corre livre, delirante, sem amarras. Padilha sabe disso e abre mão da ironia, entregando um filme complexo que não faz vilões fáceis, apesar da obrigação de estabelecer conflitos óbvios.

Esse é o maior problema deste novo "Robocop": o drama é infinitamente mais interessante que as convenções do gênero. Competente e nada mais na condução da ação, fica claro que o foco está na jornada de cada personagem, e isso pode afastar o público-alvo do filme. Lição que o diretor poderia ter aprendido melhor com Christopher Nolan e Bryan Singer: os 'fanboys' querem sim roteiro inteligente, cativante e desenvolvimento de personagens. Mas não perdoam um filme desse tipo com sequências de ação burocráticas e a descaracterização dos fetiches que no fim das contas, fazem a alegria das discussões de boteco. Sobre fetiche, me refiro ao novo visual do herói. Todo preto, nada memorável, muito longe do design icônico desenvolvido por Rob Bottin ou até mesmo a imponência de outro concorrente homem-de-lata contemporâneo, o Homem de Ferro da Marvel.

Mas se você gosta de cinema e especialmente do gênero, são falhas perdoáveis, que não tiram o brilhantismo dos acertos: temos aqui uma estréia das mais satisfatórias de um cineasta brasileiro em Hollywood, o que não é pouco. A direção de atores (Joel Kinnaman, Michael Keaton, Gary Oldman, Abbie Cornish e Samuel L. Jackson estão uniformemente ótimos e se entregando ao conceito) funciona, a fotografia de Lula Carvalho é vigorosa. E se a trilha incidental de Pedro Bronfman não chega a se impor como deveria, ao menos acerta ao invocar o tema clássico composto por Basil Poledouris para a trilogia original. José Padilha se saiu muito bem, num projeto danado desde o início. Conseguiu aparentemente fazer o filme que queria, contendo sua visão de mundo. É ficção científica boa. Se é ou não um bom filme de Robocop, aí é outra história.