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domingo, 25 de maio de 2014

PULP FICTION - TEMPO DE VIOLÊNCIA (Pulp Fiction, EUA, 1994, 157min. Dir.Quentin Tarantino)

 No momento em que este texto é escrito, contam-se exatamente 20 anos desde que Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, foi lançado. Assim, por mais atemporal que seja, o filme é talvez cria de uma era, também.

 Pulp Fiction será o assunto deste texto. É o filme mais importante na minha vida até hoje - não me recordo bem como eu estava me sentindo quando ele saiu. Ele assumiu na época a importância de um farol, uma luz nas praias longínquas das trevas; e mais, era uma prova de que havia algo a ser expressado artisticamente além do niilismo e destruição dos filmes de gênero reinantes na época. Eu tinha 14 anos. Não pretendo contar a história sobre como o filme foi feito. Ou pior, recontar pela enésima vez a história de Tarantino, quase uma fábula. Vou apenas me ater às minhas observações, sem qualquer pretensão de arquivista ou historiador do cinema. Todo mundo conhece esse filme, afinal. Este é o meu recorte sobre ele.

 Sobre o brilhantismo de Tarantino: criando uma dinâmica perfeita que desrespeita a narrativa clássica ao mesmo tempo em que conduz os acontecimentos à um clímax emocional irrepreensível, ele vai levando o filme de crescendo em crescendo, intercalando momentos de tensão maníaca com silêncios gigantescos, pontos de interrogação que nos deixam estatelados no chão, sem cama elástica. Um encontro do matador de aluguel (Travolta, em desempenho definitivo) com a mulher do chefão (Uma Thurman, entrando direto no imaginário popular usando o cabelo da musa de Godard, Anna Karina) transcorre como uma comédia romântica amalucada dos anos 50, uma cruza de Rock Hudson-Doris Day com Jailhouse Rock, tudo temperado com drogas e milkshake de $5 dólares.

 E num singelo momento, tudo isso muda. Thurman puxa Travolta para a pista de dança, um concurso de twist. Ali Tarantino confirma sua capacidade de criação infinita. Talvez seja, no fim das contas, a conscientização do milagre da vida condensado em um instante, com seu concomitante inevitável, o vislumbre vertiginoso da capacidade de se machucar e da capacidade de infligir a dor.

A cena da dança:


E Travolta, o pobre capanga que leva a mulher do chefão para um programinha inocente, está irremediavelmente apaixonado por esta mulher. Ele não sente culpa, apenas medo. Medo das consequências. Por um breve instante, eles chegam á casa dela sozinhos, e o prenúncio de uma noite agradável se anuncia. Ela coloca no sistema de som sua música favorita e Travolta vai ao banheiro. O diretor e sua editora, a já falecida Sally Menke, costuram a euforia drogada de Thurman e a dúvida de Travolta. No cinema de Tarantino, mata-se à rodo sim, mas são as questões ÉTICAS que chamam atenção. Vejamos:


 Em seguida, claro que nada dá certo. Thurman sofre uma overdose de heroína e cabe a Travolta o papel de herói trágico e apaixonado, que não irá comer a mulher do patrão, mas sim salvá-la da morte e posteriormente idealizá-la para sempre, num beijo de despedida romântico. Como o próprio diz dentro do banheiro alguns instantes atrás: "Perceba, meu caro. Isso é um teste moral com a finalidade de descobrir se você é capaz de manter lealdade! Porque ser leal é muito importante!" Não consumar o destino sexual de Travolta com Uma Thurman é uma das milhares de transgressões de Tarantino em Pulp Fiction. E é com certeza uma das coisas mais perversas que eu já vi um artista fazendo em toda a minha vida. Claro, é sensacional: deixa um nó nas nossas entranhas, estamos alucinados e babando por mais, mas sabemos muito bem que vimos e sentimos algo especial.

 Daí em diante o filme segue esse jogo de inversão de expectativas. São muitos os momentos em que Tarantino desconstrói a figura do herói e questiona o próprio tecido narrativo do cinema americano. O autor desmonta a linearidade cronológica de tal forma que não permite estabelecer um tempo presente como referência, o que inviabiliza falar que estamos perante flashbacks. Cabe referir-se a histórias interconectadas narradas fora de ordem cronológica sim, porém, sem uma determinação de tempo presente, passado e futuro, estratégia por vezes utilizada no cinema moderno. Pulp Fiction questiona não a existência de uma realidade, mas a possibilidade de aprendê-la, minando tanto o estatuto de verdade da imagem como a veracidade verbal. As histórias que os personagens contam verbalmente, assim como as três histórias e o epílogo que compõem o filme, têm lacunas que criam um sentido ambíguo e fragmentário. O filme questiona o potencial de realidade de suas imagens, evocando a ambiguidade e o poder imaginativo de narrativas não realistas. A revolução de Tarantino, que enraivece os caretas e não conseguiu ser copiada por seus inúmeros imitadores é a rejeição da lógica naturalista do cinema clássico, que concebe o cinema como uma janela ao mundo, uma lógica de transparência. Tarantino herda inegavelmente essa ordem transgressora de Godard. Um cinema que evoca referências do cinema clássico sim, mas não a estrutura.

Quando chegamos aos instantes finais da obra, Jules e Vincent, os matadores de aluguel, encontram-se no meio de um assalto sugerido no prólogo do filme. Existe um impasse, que esteticamente deve aos filmes de John Woo, o diretor chinês que reinventou o cinema de ação nos anos 90 com seus filmes "O Matador" e "Fervura Máxima".

Mas ideologicamente a praia de Tarantino é outra. Apesar de prenunciar e celebrar uma atitude relaxada (cool), tendente ao diálogo e ao pragmatismo, favorece acordos entre partes. Em vez dos confrontos sanguinolentos e desastrosos de Cães de Aluguel, em Pulp Fiction os conflitos dão lugar a acordos, atos de perdão e reconciliações.

Pulp Fiction busca o resgate de um sentido de moral ante a decadência de uma moral coletiva de origem e concepção cristãs. O filme postula a validade e a necessidade de delimitar uma ética, centrada numa idéia de honestidade mais acorde com a realidade de uma sociedade individualista e hedonista, em que o consumo é a atividade principal, que coloniza todas as esferas da vida cotidiana. Os personagens deste filme defendem conceitos como a lealdade e a amizade, que dependem de reciprocidade entre as partes.

A opção final de Jules Winnifield, de largar o crime para pregar a palavra de Deus, indica uma saída da sociedade de consumo e do materialismo, rejeitada por Vincent Vega, que afirma que essa opção o transformará num mendigo. Caminho de saída que esboça uma crítica ao consumo, confirmada no filme seguinte do cineasta, Jackie Brown. No projeto moral de Pulp Fiction, há mais questionamentos e dúvidas do que certezas, e há contradições internas que sinalizam mais um processo de busca de uma moral do que uma visão já amadurecida e fechada sobre o assunto.

 Mas essa análise é como eu disse no início, apenas uma breve análise sobre o aspecto formal da obra, notadamente revolucionário. Eu reconheço o anacronismo da citação '...no meu tempo...', mas deixe-me dizer que com a chegada de Tarantino como um cineasta novo e vital, o surgimento de bandas como o Nirvana e posteriormente Oasis deflagrando uma nova revolução na música popular, respectivamente nos Estados Unidos e Inglaterra; mais uma nova onda de desenhistas e criadores que tomaram de assalto a cena das histórias em quadrinhos, fundando uma nova batelada de editoras independentes, a década de 90 foi um lugar maravilhoso para um moleque fissurado por cinema, rock e gibis. Todo o conceito de 'indie' que hoje foi criminosamente pervertido e engarrafado para as próximas gerações surgiu aqui. Não cabe citar aqui quem foi absorvido pela indústria e se tornou referência comercial inclusive, o popular 'se vendeu'. Ser cooptado pela indústria não é necessariamente sinal de queda de qualidade na produção criativa, como o próprio Tarantino prova até hoje.

O que importa é que através dessa obra, eu cheguei à literatura policial de Dashiell Hammett, ao cinema de Martin Scorsese e Godard, junto com um renovado interesse pelas cinematografias do mundo todo. Os desdobramentos vão desde a descoberta de Glauber Rocha e o cinema novo até a nova onda do cinema italiano agora, em 2014, liderada por Paolo Sorrentino e seu notável "A Grande Beleza". Trocando em miúdos, Quentin Tarantino renovou meu interesse pelo cinema e melhor, incitou o diálogo sobre cinema. É isso que eu faço aqui, neste blog. E esse interesse e vontade de diálogo são algumas das razões para muitas pessoas escreverem sobre filmes ou fazê-los, formarem bandas, publicarem livros, poesias, histórias em quadrinhos...é a renovação do sangue, necessária na arte e na vida. Na minha opinião, tudo isso é Pulp Fiction.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

X-MEN: DIAS DE UM FUTURO ESQUECIDO (X-Men: Days Of Future Past, EUA, 2014, 131min. Dir. Bryan Singer)

Uma curiosidade:

Em 2014, a Marvel Comics completa 75 anos de publicações.

É interessante observar que na logo comemorativa constam apenas - em silhuetas icônicas - respectivamente, O Homem-Aranha, Capitão América, Hulk e Homem-de-Ferro. Mas é bom que seja assim. Os X-Men, cria de Stan Lee e Jack Kirby e de mais um punhado de visionários, são um grupo de párias, excluídos sob qualquer condição. Mesmo sendo os mais vendidos da editora, mesmo sendo estrelas de sete (!) filmes, numa série que não dá sinais de parada. Comercial e criativamente, nos quadrinhos e agora no cinema, os X-Men são os párias mais cool que eu consigo pensar na cultura pop. Neste fabuloso "X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido", quem recupera esse bem-vindo status é o diretor e artista responsável pela concepção da série nos cinemas desde 2000, Bryan Singer.

Seus primeiros X-Men e X-Men 2 são luminares que conduziram filmes baseados em histórias em quadrinhos de volta ao panteão das grandes produções. Vale lembrar que esses mais Blade de Stephen Norrington e os dois primeiros Homem-Aranha de Sam Raimi, deram o tom que todas as outras obras de gibi seguiram posteriormente. Vale lembrar que esses criadores trabalharam com os personagens da Marvel dentro de grandes estúdios, o que implicava restrições criativas diversas, ainda que não prejudicando o resultado final. No caso dos X-Men, a debandada de Bryan Singer, trocando os mutantes por decisões de carreira equivocadas e a entrada de diretores menores, sem pulso firme e pegada autoral, como Brett Ratner e Gavin Hood, gerou filmes medíocres como X-Men: O Confronto Final e X-Men Origens: Wolverine. A esperança dos fãs da série parecia ir pelo ralo junto com a qualidade da série, que como comprovou Wolverine ano passado, só parecia despencar.

Todo esse preâmbulo apenas para dizer que paralelo à ascensão da Marvel Filmes e seus bilhões faturados com Os Vingadores, Homem de Ferro, Thor e Capitão América, alguma cabeça pensante na FOX deve ter colocado a mão na consciência. E assim como X-Men: Primeira Classe, do brilhante Matthew Vaughn já prenunciava uma volta ao glorioso estilo de Singer, com o próprio produzindo, é com prazer que eu informo a você - que gosta dos X-Men e sabe como é bom o conceito - o quanto essa série é bacana: "X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido" é o filme dos mutantes que eu esperava há mais de dez anos, mais precisamente desde o final de X-Men 2.

Usando com inspiração todo o cânone dos personagens construído na mitologia do cinema, Singer e o roteirista Simon Kinberg trazem ainda a inspiração da HQ Dias de Um Futuro Esquecido, escrita por Chris Claremont e desenhada por John Byrne nos anos 80. Mas tudo é ponto de partida para um desenvolvimento inusitado, original, transgressor de regras e que ao mesmo tempo honra as raízes do comic book. Principalmente, dos primeiros filmes, crias de Singer, mais o Primeira Classe dirigido por Vaughn.

A história é derivativa, mas como toda boa ficção científica, deliciosa, implausível e cheia de possibilidades.

Num futuro dominado pelos Sentinelas, máquinas criadas para localizar e eliminar mutantes, a raça humana está á beira da extinção. Quem sobrou vive em campos de prisioneiros (uma analogia com o primeiro filme da série, os campos de concentração do nazismo), como fugitivo ou escravizado, colaborador de robôs. Aliados nesse futuro possível, Charles Xavier (Patrick Stewart) e Magneto (Ian McKellen) criam um plano para transferir a consciência de um deles para sua versão do passado a fim de impedir um assassinato que selou o destino da humanidade e a construção dos sentinelas pelas mãos do empresário Bolivar Trask (Peter Dinklage). Entretanto, apenas Wolverine (Hugh Jackman, de volta á melhor fase do personagem, uma mescla de Clint Eastwood/ Dirty Harry com os desenhos em movimento de Jim Lee) é capaz de suportar o estresse físico da viagem devido ao seu fator de cura. Assim, Logan se voluntaria para voltar aos anos 70.

E daí em diante começa a diversão. Em pouco mais de duas horas, tantos detalhes, referências pipocam na tela que é melhor listar sem ordem tudo que eu consegui captar numa primeira visita à "Dias de Um Futuro Esquecido":
 * O velocista Mercúrio (o novato Evan Peters, brilhante), no filme apenas intitulado 'Peter', é dono da melhor cena do filme e possivelmente da melhor cena de ação de 2014. E ainda existe uma menção ao garoto ser filho de Magneto. Vamos ver como isso se desenrola nos próximos filmes.
 * Singer entende o personagem Wolverine melhor do que nenhum diretor. Parece protagonista, mas funciona de fato como coadjuvante de luxo, um durão-motherfucker-com-coração-de-ouro indestrutível, ao mesmo tempo em que boa parte da trama é ancorada no carisma dele. Hugh Jackman faz aqui sua melhor representação do personagem desde o segundo filme da série. Vai ser um baita desafio para a Marvel substituir esse cara, e assim como Bond para Sean Connery, o próximo que usar as garras do mutante canadense vai sofrer inevitavelmente com a comparação.
 * Jennifer Lawrence como Mística prova que mesmo a maquiagem mais pesada não é capaz de esconder a... Exuberância e o... Talento desta jovem atriz. E tenho dito.  
 * O sabor de Além da Imaginação, de toda a ficção científica de boa cepa desenvolvida por gênios como Irwin Allen e Gene Rodenberry, está aqui. Inclusive uma referência ao seriado Star Trek original. Singer é trekkie fanático, e sabe que boa Sci-fi se faz com idéias, e não com CGI.
 * Longe de ser spoiler, mas que final, que clímax absurdo de bom. A costura das duas linhas temporais, a ação incessante e a conclusão da trama deixa qualquer fã salivando pelo que virá a seguir.
 * A constatação de que X-Men foi, é, e sempre será sobre a dicotomia Charles Xavier/Magneto. São duas visões que entendem de maneira diferente o mundo que os rodeia e os rejeita. Por mais que a trama dê voltas, e tente encontrar antagonistas, o cerne do universo dos mutantes é essa disputa ideológica que sempre extrapola a diplomacia e tem consequências desastrosas.
  *A trilha sonora com a fanfarra clássica da série, composta por John Ottman, responsável também  pela montagem preciosa e a ambientação nos anos 70, influência declarada no cinema de Singer. Tudo funciona.

 Mais detalhes virão numa revisão atenta, mas o que dá para dizer agora é que se você ficou feliz com a surpresa que foi o primeiro filme da série, se gostou mais ainda do segundo, detestou a lambança cometida por Ratner no terceiro filme, assim como esses terríveis filmes solo do Wolverine...  E no fim das contas, viu luz no fim do túnel com X-Men: Primeira Classe... Então eu te digo que "Dias de um Futuro Esquecido" é a melhor versão dos mutantes na tela grande até agora. Não é apenas um grande filme ou adaptação boa dos quadrinhos, mas um passo necessário para colocar de volta aos trilhos uma franquia que parecia desconjuntada, agora num único universo coerente e funcional, cheio de possibilidades.