Powered By Blogger

quinta-feira, 5 de junho de 2014

ADULTOS BRINCAM QUE SÃO DEUSES (Sobre o fim do Ira! como o conhecemos)

Araraquara é uma cidade do interior de São Paulo, situada à mais de 300km da capital. Eu não sou de Araraquara. Nasci em São Paulo, mais precisamente no bairro do Bom Retiro, onde vivi até meus onze anos de idade. Depois mudei-me com meus pais para Araraquara, terra de meus avós. Hoje tenho 33 anos. Moro em Araraquara há mais de vinte anos e gosto daqui. Mas eu sou de São Paulo. Minha infância por lá não foi colorida, nem ensolarada. Fui feliz sim, mas brincando em corredores de prédios de apartamentos velhos (mais informações, favor assistir "O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias", dir. Cao Hamburguer, BRA, 2006). E uma memória recorrente da minha infância é ficar preso em enormes congestionamentos, sentado no banco de trás do carro, olhando a cidade à noite, com o asfalto molhado pela chuva onipresente misturada ao neon das fachadas, lojas, outdoors. O cheiro de fumaça, poluição. Eu tive bronquite. Eu era introspectivo e lia gibis, assistia filmes. Achava as garotas bonitas, mas poucas vezes tive chance ou coragem de dizer. Não tinha muitos amigos e gostava da minha família. Estudei em colégio católico e sempre gostei de tempo frio, de chuva.

Mas minha juventude de fato eu vivi em Araraquara. Aqui eu conheci tudo de bom e ruim e muito pior que a vida pode oferecer. E conheci o Sol, um puta calor. Uma mudança radical sem dúvida, que venho digerindo até hoje. Vivo em processo de metalinguagem da minha própria vida. Um eterno 'E se?', sempre paira na minha cabeça quando a vida, essa danada, me propõe encruzilhadas tão difíceis de resolver que prefiro fugir. Mas em Araraquara eu conheci o IRA!. E junto com essa banda maravilhosa conheci a glória e os descaminhos do rock'n'roll. E o IRA! me lembrou, súbito, quem eu sou, de onde eu vim, porque eu era diferente, porque eu me sentia separado de todos os grupos, afinal.

O IRA! foi uma banda de rock'n'roll paulistana, da Vila Mariana. Usando a cidade de São Paulo como pano de fundo, incorporava o ideário da rebeldia adolescente numa roupagem musical furiosa, rústica e que nunca pedia desculpas. Marcos Valadão, o Nasi, era o vocalista impetuoso, briguento, bonachão. Edgard Scandurra, o gênio da guitarra invertida, compositor atormentado, líder de honra, dono do brinquedo. Ricardo Gaspa, o baixista dando o ritmo, impassível, íntegro. E André Jung, a fúria na bateria, básico e pesado, sem firulas.

Quanto mais eu conhecia a história da banda e ouvia os discos, mais me identificava com a postura, o som. Palavra terrivelmente mal usada nos dias que correm, mas vá lá: a atitude desses caras. Eu tinha vinte anos, menos de vinte, enquanto eles entravam numa onda de sucesso devido à MTV, disco ao vivo, muita badalação. Turnês extensas. Mas o público fiel do IRA! vinha desde os anos 80, e eu era o quê? A segunda geração que já conhecia a banda? Chegavam os anos 2000.

E o IRA! sempre visitou Araraquara, sempre visitou o interior de São Paulo. Eu gostava disso. Conheci a banda em cima do palco e ali eles sempre foram extasiantes. As referências eram inúmeras. E através das indicações de Nasi e Scandurra em longas entrevistas na finada revista SHOWBIZZ, fui atrás vorazmente, de The Jam. The Who. Hip-Hop. Mutantes. Black Music. Wire. E eu entendi a linhagem herdada da rebeldia, que nunca abaixava a cabeça, nunca se conformava.

A carreira do IRA!, do meu ponto de vista, foi irretocável. Eles nunca foram banais. Quando tiveram que se curvar ao mercado, fizeram o óbvio de maneira diferente. Zoaram e atazanaram Liminha, o baixista dos Mutantes e produtor conceituado dentro do estúdio. Saíram com um disco clássico que influenciou até a geração Mangue Beat (Psicoacústica), outro influenciado por eletrônica que ninguém deu muita bola (Você não Sabe Quem Eu Sou). Quando lançaram um registro acústico, saíram em turnê plugados, eletrificados, invertendo as expectativas dos que achavam que eles faziam um som inofensivo. Ninguém pegava o IRA!. Eles foram imbatíveis no seu próprio jogo. Traçando um paralelo com este que vos fala, eles aprontaram todas, pensando que eram imortais. Por um tempo de fato, foram.

E como toda história do rock, os excessos, a estrada e as diferenças resultaram num baita quebra-pau épico, conhecido por todos. Que é, afinal, o encerramento digno de toda boa banda de rock. Alguém realmente acredita em apertar as mãos e cada um ir para o seu lado? Não no rock'n'roll. Claro que existem os Stones e os Rolling Stones sempre serão os Rolling Stones, intocáveis na minha imaginação, heróis do impossível. Capazes de reconciliações infinitas e sorrisos (quase) sinceros de uns para os outros no palco, capazes (ainda) de emocionar trintões, quarentões, cinquentões, sessentões, ah, você já entendeu onde eu quero chegar.

Mas para todos aqueles que não são os Stones, o sonho é muito distante. Algumas pendências entre amigos cobram um preço caro demais, e esta noite no SESC Araraquara, elas estavam todas estampadas no rosto de Nasi. O IRA!, quis o destino, voltou pela metade, sim. Mas o coração da razão, este ficou abandonado em algum lugar na estrada, lugar no tempo em que mesmo chapadíssimos de todas as substâncias inimagináveis, Nasi e Scandurra formavam uma unidade, junto com Gaspa e Jung. Eles eram uma gangue, e esse era o espírito da coisa.

Agora não mais. O público desta noite se divide entre jovens preocupados com seus celulares, casais felizes, saudáveis e também com seus celulares, famílias completas que encaram a coisa toda como um piquenique e alguns trintões deslocados como eu, que mal podem esperar a hora das luzes abaixarem para que a banda toque e disfarce toda sua inabilidade social ao mesmo tempo em que incendeie seus sonhos elétricos mais impossíveis. Não aconteceu nem uma coisa nem outra. A banda selvagem de outrora deu lugar à um grupo seguro, que toca os hits profissionalmente, implacável. As canções são incríveis e se sustentam quase sozinhas, mas como cantou BB King, 'the thrill is gone'. O barato se foi.

Nasi parecia meio perdido, olhando o público com um inegável ar de agradecimento, mas algo não batia. Ele e Edgard Scandurra trataram de se evitar durante quase 100 minutos de show. Eu me pergunto o quão surreal, doloroso e difícil deve ser isso, pois são caras que se conheceram na escola. Eu vi Nasi tentar interação, mas Signore Scandurra não deu brecha. Distribuiu sorrisos e solos, e deixou claro que estava tocando para o público, não para a banda. Eles não se olham mais, não sorriem um para o outro, e foi isso o que eu mais senti falta neste show. Porque um show do IRA! sem essa conexão não é um bom show da banda, nem de longe.

Eu sei que todo mundo cresce e precisa ganhar dinheiro. Compreendo que para boa parte da platéia, não faz diferença. A formação atual do IRA! vai excursionar por quase dois anos, e talvez gravar um disco de canções inéditas depois. Dado o que vi há poucos instantes, pergunto: qual a razão? Quantas dessas pessoas vão comprar um disco de inéditas do IRA!, é o que me pergunto. Qual é a motivação do IRA!, afinal? Vão virar uma banda dinossauro, exatamente o que eles detestavam na juventude? Eu pensei muito enquanto assistia ao show em Pete Townshend, na frase "Hope I Die Before I get Old"("espero morrer antes de ficar velho").

Tenho 33 anos e o IRA! um pouco menos, ou mais, de acordo com os relatos sobre a origem da banda. É uma idade complicada...quando o cabra deixa a idiotice adolescente de lado pelo que lhe soa mais 'seguro', com resultados quase sempre desastrosos. Aquelas viagens épicas de vinte e poucos anos, pode esquecer, xará. Mas a loucura, o ímpeto selvagem, nunca abandona a pessoa. Algumas conseguem manter esse equilíbrio e preservar o coração vívido e a razão. Outros se apagam, viram esboços do que eram antes. Desconhecidos para os próprios amigos e familiares. Seguem vivos, mas o brilho se vai, e nunca mais conseguem recapturar.

Sinto informar que não posso concluir esse texto honestamente emitindo uma opinião exata sobre o que vi no palco do SESC Araraquara hoje. Eles são meus heróis, e aos heróis sempre será concedido o benefício da dúvida. Envelhecer bem é para poucos, e a gente faz o que pode. Pessoalmente minha versão do IRA! favorita é a selvagem, descontrolada, à beira da destruição, de alma punk, com o coração na boca, transbordando romantismo. Uma gangue de perdedores da Vila Mariana que encontraram no rock a chance de virar a mesa, de escrever seu próprio livrinho de regras. E eles conseguiram; viveram e morreram por essas regras. O IRA! que vi hoje é seguro, profissional, e sem alma. O Nasi clássico, o Nasi da lata, da copa de 70, desbocado e marginal, não estava lá. Não havia interlocutor, seja da banda ou do público. Todo mundo gritou e bateu palma, mas isso é o clichê do clichê, o inverso da proposta original da música rock, que em sua origem consistia em arrancar as poltronas durante a exibição de "Jailhouse Rock".

Nada disso. Me despedi da banda e tomei uma cerveja num carrinho de cachorro-quente, lá fora. A cerveja não é mais um símbolo de transgressão ou sinal de noitada. É mais um item, uma obrigação no circo temático da coisa, assim como a garrafa de Red Label que Nasi sorveu lentamente durante a extensão do show.

Então, o que sobra do bom e velho rock'n'roll?

Rock'n'roll, eu espero, está sendo feito neste exato momento por jovens muito jovens, mal-educados, deselegantes, que mal sabem se expressar e estão loucos para devorar o mundo todo de uma vez só com sua versão do rock'n'roll, que será rap, funk, pop ou sabe-se-lá, ainda bem. Eles não fazem ideia de que serão engolidos pela máquina e em 10, 20, 30 anos talvez, vão virar uma versão aguada deles mesmos tocando para os pais dos garotos que amavam sua música. E agora esses garotos escrevem textos ressentidos e raivosos como este aqui, justamente porque eles vêem todo seu ideal de rebeldia transformado num greatest hits alá Roupa Nova endossado justamente pelas pessoas que a banda no início dizia odiar. Isso é crescer? É evoluir? Não é justo dizer adeus ao IRA!. Eu sempre os apoiarei venha o que vier. Então digo adeus à mim mesmo, que lamentavelmente cresci e não consigo mais preservar a capacidade de me enganar e me embriagar regularmente, irresponsavelmente. E isso, meus amigos, quer dizer que o rock acabou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário