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segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O Palhaço (Idem, Brasil, 2011, 88 min.)

    Tem sessões de cinema que, por razões as vezes alheias ao próprio filme, se tornam inesquecíveis. Me lembro claramente quando, numa noite de calor em 2000, fui ao SESC aqui de Araraquara conferir, numa exibição ao ar livre, o filme de Luís Fernando Carvalho baseado na obra de Raduan Nassar, "Lavoura Arcaica". Saí extasiado por diversas razões: o clima de reverência da sessão em si, a complexidade da obra, dirigida com afinco por Carvalho, a entrega dos atores. Raul Cortez, Simone Spoladore e...Selton Mello. Até então Mello era mais um ator de tv que tentava a sorte na tela grande após um grande sucesso (O Auto da Compadecida, de Guel Arraes) e em "Lavoura" surpreendia num papel de filho rejeitado. Era uma entrega, uma raiva difícil de esquecer. E uma promessa de ator que poderia ou não se concretizar.

   Eis que estou aqui, dez anos depois, para dizer que Selton se tornou não apenas um ator único, conseguindo equilibrar versatilidade no cinema e uma carreira de astro de tv incomum no Brasil (note como diferente de muitos de sua geração, só topa séries, projetos fechados que se destacam mais na cabeça do público volátil de televisão). Se tornou ainda um diretor, arrisco dizer um cineasta relevante, com identidade visual e bom gosto na escolha de projetos.

   Seu primeiro projeto em 2008, "Feliz Natal", era um drama de tintas carregadas, influenciado pelo cinema de Lucrecia Martel e o naturalismo de "Sombras", obra seminal de Cassavetes. Já apresentava ali duas de suas características mais marcantes: o casting inspirado, principalmente em pontas inesquecíveis (Lúcio Mauro como um chefe de família assustador, Darlene Glória fazendo uma matriarca decadente), e um cuidado na elaboração do roteiro e na mise-en-scène incomum para realizadores nacionais, até veteranos.
 Ao mesmo tempo, era de se notar sua preocupação temática: o núcleo familiar em dissolução, uma crise moral que assolava todos os personagens e era presenciada, de maneira crua e eficaz, sempre pelas crianças. É um grande filme.

    E que alegria confirmar que mais da metade dessas qualidades estão presentes de maneira bem dosada por Mello em seu segundo e consagrador filme, "O Palhaço", um verdadeiro tributo a todo tipo de artista que algum dia ousou se questionar sobre sua habilidade, sua capacidade de ver o mundo sob um viés mais otimista. É a história de Benjamim, um palhaço de circo que junto à sua trupe familiar circense roda um Brasil atemporal, rural, levando um pouco de alegria aos recônditos esquecidos do país.

   Mas há um problema. Benjamim não consegue encontrar mais paixão no que faz. Perdeu a capacidade de ver o belo da vida há tempos. Seu pai, palhaço experiente interpretado com afeto e emoção inenarráveis por Paulo José, sabe que este é um calvário que o filho terá de atravessar sozinho. A busca pela identidade, a viagem pelo mundo que o fará entender um pouco mais sobre si mesmo e o próprio ofício. Rir e fazer rir. Novos ares, ventos de mudança. E não é à toa que o ventilador é uma obsessão quase recorrente de Benjamim durante o filme. Selton domina a metáfora e a torna simples, mas não desprovida de significado.
Dirige com esmero nos enquadramentos, sabe quando o filme pode aliviar e pegar pesado no sentimento de inadequação do personagem. Existe algo de Tim Burton, uma esquisitice simpática, um quê dos ciganos amalucados de Emir Kusturica, e muito de Wes Anderson. Mas sempre essencialmente brasileiro, sem se deixar soterrar por essas influências.

   E ainda há participações preciosas de gente como Moacir Franco e Jorge Loredo, o Zé-Bonitinho, em pontas impagáveis, momentos-chave do filme que Selton confia a esses veteranos. Eles não decepcionam. De certa forma, é como se o ator-diretor olhasse para os grandes do passado de maneira a poder seguir em frente com uma identidade própria, mas com uma consciência de que todo tipo de arte é como um manto herdado. Toda a angústia que um artista passa no processo criativo já foi sentida de maneira maior ou menor por outro lá atrás. E é esse conhecimento em história, essa atenção aos artistas veteranos que talvez o faça entender que se eles chegaram até ali, refinando seu ofício sem esconder as marcas da vida...quem sabe a nova geração também possa seguir adiante. Sorrindo aqui e ali.

2 comentários:

  1. Bela análise do filme.Acho que é um destaque no cinema brasileiro dos últimos tempos. Nem sei que caminho via google, procurando alguma coisa sobre Araraquara, é que cai no seu blog. Agora virei ler mais vezes.

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  2. Obrigado, Nicole. Gostei muito desse filme e de Feliz Natal, primeiro que Selton Mello dirigiu.
    E seja bem-vinda, sinta-se à vontade para comentar e sugerir filmes. Até mais!

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