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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O Mestre ( The Master, Dir. Paul Thomas Anderson, EUA, 2012, 144 min.)

A voz de Freddie Quell é a de um homem dilacerado pela guerra, pelo vício, pelos desvios da alma. Ele é santo e profano, alcoólatra com alma de criança, intenso e capaz de ternura ou grandes momentos de selvageria incontida. Na obra de Paul Thomas Anderson, 'O Mestre', ele é um homem sem rumo em 1950: após voltar da guerra contra os japoneses, entra em implosão espiritual na busca de um sentido para a vida, de amor, de explicações para um mundo que não consegue mais entender. Joaquin Phoenix dá vida a esse personagem num esforço interpretativo para as décadas seguintes, registro certeiro de um homem que odeia todos os homens porque odeia a si mesmo.

Assistir esse filme é como testemunhar um desastre natural do qual não conseguimos desviar o olhar; sua força está além de premiações ou categorias. Tem cenas aterrorizantes, outras de uma beleza rara, desconcertantes, que surpreendem pela tradução visual do estado de espírito desses homens em busca de algo que se perdeu. É o que os americanos costumam chamar de 'larger than life' - os limites da tela são poucos para tanta vastidão de sentimentos.

Freddie encontra num desvio da vida o líder carismático do 'O culto', Lancaster Dodd. Ele é vivido por Philip Seymour Hoffman e foi livremente inspirado no pensador máximo da Cientologia, L.Ron Hubbard. Isso é tudo que se precisa saber, porque sendo essa a quinta colaboração de Hoffman com o diretor, o talento e a precisão do ofício de Hoffman é perfeito. Ele constrói no início um tipo sutil e reservado que conquista as pessoas com seu magnetismo e loucura. Depois se revela controverso e anda na corda bamba do altruísmo e do charlatanismo, nunca resvalando na paródia barata.

A habilidade de encenação do diretor Anderson só pode ser superada pelo seu brilhantismo em extrair desses dois atores superlativos desempenhos extraordinários de todo seu elenco.

Freddie Quell é um homem em busca de uma família para ser, pertencer a alguma coisa que faça sua vida tomar sentido, e Lancaster Dodd é um líder de famílias, de filhos, de seguidores, que procura o sentido ou tenta fugir do vazio criando teorias para suplantar o medo do que possa vir a seguir. Em estradas paralelas, é o mesmo medo, o mesmo vazio que encaram no abismo. Medo da morte, da vida, do incesto, e no início dos anos 50 na América, o pavor da ameaça atômica. Esse pano de fundo situa o filme como um estudo de personagem investigador do comportamento dessas duas personalidades aparentemente opostas, mas gêmeas em anseio pelo que a vida os reserva. Uma magnífica sequência em que Lancaster e Freddie são presos e outra em que andam de motocicleta no deserto comprovam isso: são homens livres e presos nos limites da própria mente, onde recriam regras de convivência a cada instante.

O diretor Anderson e seu elenco, e equipe técnica (fotografia de Mihai Malamare Jr. e trilha sonora original do guitarrista do Radiohead, Jonny Greenwood), estão acima de premiação. Assim como Welles, Kubrick, Scorsese e outros visionários, sua obra não tem a intenção de congraçar; ela existe para dividir, gerar controvérsia pela genialidade. Saí do cinema com a certeza de que vi um dos meus filmes favoritos para sempre, e de que a única solução dos sem solução é tentar estabelecer alguma relação com o próximo. Sem isso, o que sobra é a busca por iluminação em caminhos tortos. Uma busca belíssima e dolorida, poética e melancólica, como só um autor do quilate de Paul Thomas Anderson e seus colaboradores saberiam traduzir em cinema. E isso, meus amigos, mais uma vez, é arte.

Ou nas palavras de Lancaster Dodd, uma das frases mais arrepiantes que eu já testemunhei numa sala de cinema:

"Fique aqui se quiser. Mas se sair, não volte jamais. Tente sair ao Mundo e descobrir como é viver sem um Mestre...e se conseguir, você será o primeiro na história do Mundo."

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Jack Reacher: O Último Tiro (Jack Reacher, Dir. Christopher McQuarrie, EUA, 2012, 130 min.)

   Demorou, mas Tom Cruise tropeçou: esse Jack Reacher é uma fita policial de investigação genérica, quase um enlatado, um episódio piloto de uma série de tv ruim dos anos 80. Fazia muito tempo que eu não via tanta gente boa envolvida num negócio tão insosso.
 
  Quem é esse 'Jack Reacher'? Bom, o personagem é um monte de clichês tão grande que fica difícil saber se a intenção do seu criador, o escritor americano Lee Child, era ser cínico e fazer referências a outros milhares de detetives particulares desajustados da literatura e cinema. Ou levou tudo a sério e saiu com um tipo que é sisudo, sem humor, sem história, e que francamente na pele de Tom Cruise, ficou involuntariamente engraçado. Mas fazer o quê, os  bestsellers americanos de hoje e ontem para uma parcela do público não precisam ser originais ou ao menos esforçados, quiçá imaginativos.

 Esse tal Reacher é convocado por um atirador suspeito de matar cinco vítimas para destrinchar uma investigação com ramificações que francamente, são muito entediantes. Nada tem um pingo de invenção, é tudo duro, sem alma, sem vida.

 Christopher McQuarrie é o escritor vencedor do Oscar por roteiro original de Os Suspeitos, pequena gema dirigida por Bryan Singer em 95. Daí em diante, perdeu o pé e só demonstrou vitalidade no neo-western subestimado The Way Of The Gun que escreveu e dirigiu em 2000. Depois sumiu de novo, fez uma polida de roteiro aqui e ali (O primeiro X-Men, Operação Valkíria) e retorna com a esperada displicência de quem não senta na cadeira de diretor há mais de dez anos. McQuarrie é um diretor de ação ruim. Tenta emular o estilo setentista de Don Siegel em Dirty Harry mas acaba mesmo é com cara de Joel Schumacher adaptando John Grisham. A direção de atores é fraca, e deixa tudo com uma impressão de teatrinho de marionetes que acaba nivelando as interpretações de atores tão díspares quanto o mediano Cruise e o excelente Richard Jenkins. Pasmem, o lendário diretor alemão Werner Herzog aparece em três cenas como o vilão, claramente topando essa barca para financiar seus ousados e geniais documentários.

Para afficionados, ainda vale citar uma perseguição de carros bem dirigida, provavelmente por diretor de segunda unidade. Ameaça tirar o filme do traço, mas em vão.

E para Cruise, que bancou e é estrela dessa empreitada mal-sucedida, o que fica é uma perda de tempo. Um cara que já trabalhou com Scorsese, PT Anderson, Brad Bird, JJ Abrams, John Woo, e mais uma lista de colaboradores talentosos não merecia essa bomba. Mas não tem problema. Esse 'Jack Reacher' é daqueles filmes que logo no final a gente já esquece o começo. Não mancha o currículo de ninguém e entra para a história como mais uma fita genérica. Até aí tudo bem, se fosse o Eric Roberts ou o Tom Selleck. Mas até tu, Tom Cruise? Boa sorte na próxima.  
   

O Último Desafio (The Last Stand, Dir. Jee-Woon Kim, EUA, 2013, 107 min.)

   Arnold Schwarzenegger é um ícone que tentou o impossível: ser herói dentro e fora das telas. Foi ator, político, bodybuilder, imigrante bem sucedido na América. Foi tudo isso ao mesmo tempo, mas agora seu maior inimigo, todo mundo sabe, é a velhice.

Mas como o austríaco sempre foi rei em se autopromover, o veículo para seu 'comeback', esse 'O Último Desafio', foi alardeado como um retorno ao cinema á maneira de Clint Eastwood nos anos 80: um astro de ação envelhecendo com sabedoria, consciente de suas habilidades físicas já limitadas, mas com uma ironia e visão de mundo renovadas, experiente e maduro. Um lobo velho em pele de cordeiro.

Não deu certo. O filme foi universalmente rejeitado, o maior embaraço na carreira do astro. Custou 30 milhões e até agora não rendeu nem 15. Em outros tempos, 15 milhões seria a renda do primeiro dia de um filme de Schwarzenegger.

O revés de bilheteria é até compreensível  pela campanha completamente errada do estúdio, que promoveu o filme com Arnold dividindo posters com Johnny Knoxville, o eterno 'Jackass', que poderia afastar uma boa parcela do público. Knoxville é veneno de bilheterias, e pior, não aparece no filme em mais de três cenas. Ainda por cima foi lançado em janeiro, época em que os cinemas ainda estão ocupados com os concorrentes do Oscar ou produções B de terror sem datas melhores para serem escoadas. Fosse lançado no final das férias lá nos EUA e aqui, como Stallone fez com sua cinessérie Os Mercenários, a fita poderia muito bem encontrar seu público.

Mas quanto ao filme, a rejeição é meio como bater em gato morto . Apesar de não se juntar ao núcleo duro de filmes de Arnold ( Exterminador do Futuro, Predador, Conan, True Lies), O Último Desafio é uma fita decentíssima de ação, muito melhor que a média do gênero nos últimos tempos. É dirigido por Jee- Woon Kim, o coreano malucão que fez os cults de nascença A Bittersweet Life, I Saw the Devil e The Good The Bad and The Weird. Felizmente, Jee-Woon entende as convenções necessárias num filme de Schwarzenegger e segue a fórmula de maneira estoica, adicionando aqui e ali bem vindos insights, dando uma cara mais moderna ao pacote todo.

Schwarzenegger envelheceu, óbvio, mas continua o mesmo, boa-praça e durão. Ainda tem presença icônica na tela, dispara grandes frases de efeito e de todos os heróis dos anos 80, é o que melhor sabe extrair humor de sua persona. Ele sabe que não é levado á sério e toma proveito disso, como sempre fez. Mas talvez seja pedir demais ao público moderno de multiplex entender quem é esse cara. Infelizmente seu público-alvo não entende a sutileza de Arnold estar se tornando um tipo Clint Eastwood, e o próprio ator, convenhamos, não tem o mesmo calibre de Clint para executar essa manobra, o que pode soar para alguns como pretensão demasiada.

A história é batida, mas funciona: Um criminoso audacioso (Eduardo Noriega, ator de Amenábar aqui se esbaldando na canastrice, como deve ser) engata uma fuga espetacular rumo á fronteira do México, e vai passar com seu Cartel a toda velocidade pela pequena cidade de Summertown Junction, onde vai enfrentar a resistência de um xerife experiente, Ray Owens (Schwarza) e seu pequeno staff, composto por um ex-herói de guerra (Rodrigo Santoro), dois oficiais inexperientes sedentos por ação (Jaimie Alexander e Zach Gilford), o alívio cômico inevitável (Johnny Knoxville quase estragando o filme) e Luís Guzmán, que faz o papel de.... Luís Guzmán, e se sai perfeitamente bem com isso.

Não sobra muito a dizer além de que as cenas de ação são de primeira, o filme tem ritmo e um final triunfal, digno de Schwarzenegger. Foi meio triste ver a sala quase vazia, porque nos tempos de Exterminador do Futuro 2 e True Lies, lembro bem dos cinemas de rua lotados e o público empolgado. Infelizmente em alguns casos as coisas mudam e não podemos fazer muito. Fiquei até o final da projeção, sozinho na sala, como tributo ao último grande herói de ação que me concedeu matinês tão saudosas, cheias de ação e aventura. Melhor sorte na próxima, Schwarza! Afinal, ele mesmo disse que sempre vai voltar.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O Lado Bom da Vida ( Silver Linings Playbook, EUA, 2012, 121min. Dir. David. O. Russell)

  Interessante assistir o novo filme do diretor Russell e constatar que ele aprofunda a abordagem familiar realizada desde The Fighter, aquele com Wahlberg, Christian Bale como um junkie de crack (papel que lhe rendeu Oscar) e mais uma família maluca de irlandeses na América. Tudo aquilo era muito bem encenado, exalava vida, tinha muito coração, acima da média. O cinema americano carece desse tipo de estudo de personagem que temos aqui nesse O Lado Bom da Vida, um filme que apesar das indicações para prêmios e as discussões sobre ser subestimado ou superestimado, felizmente vai passar no teste do tempo e quem sabe vai se tornar um pequeno clássico americano.
  O rapaz bipolar e esquizofrênico que no passado perdeu mulher devido a uma traição e um desenlace trágico (não vou estragar as surpresas) volta para casa após um tempo internado e encontra carinho nos laços familiares e de amizade. A mãe passiva e amorosa. O pai fanático por futebol americano, impulsivo e maníaco como o filho. O amigo à beira de um ataque de nervos num casamento fora dos eixos.
 E a adorável garota bipolar também, com um passado tenebroso, de volta ao lar dos pais para tentar reconstruir, ou não construir mais nada errado após um grande fracasso amoroso. Pat e Tiffany são um desses casais 20 tortos que o cinema americano vira e mexe nos presenteia, um deleite de ver a comparação de diferenças, de cicatrizes, a química certeira. Bradley Cooper e Jennifer Lawrence estão perfeitos, críveis em suas fragilidades e ao mesmo tempo exalando carisma de estrela que ambos tem de sobra.
  E que surpresa é ver De Niro finalmente desligando o piloto automático e entregando uma atuação cheia de emoção, como nos tempos de Scorsese. Como o pai errante, bookmaker, que só quer fazer e ver o bem do filho, ele grita, chora, briga e tem seu grande papel desde Cassino, em 95. Vale mencionar a grande atriz australiana Jackie Weaver, de Animal Kingdom, aqui como a mãe carinhosa e que fica entre o pai e filho sem saber bem qual rumo tomar.
  Francamente, todo o elenco de apoio, o psicólogo, o melhor amigo, o policial, o amigo do pai também apostador e fanático por jogo, o irmão...agora não me vem os nomes, mas toda essa gente misturada á esses quatro que eu citei formam um elenco afinado e bem dirigido como há muito tempo eu não via. Essa habilidade do diretor em puxar 'verdade' do seu elenco é o triunfo desse filme. Tudo é muito pessoal, muito honesto. Apesar de lá pelas tantas tudo precisar ser amarrado (e aí entra a convenção que nos lembra que estamos em um filme comercial e blábláblá), não chega a afetar o conjunto e revela em Russell uma habilidade insuspeita de canalizar um Frank Capra na direção, coisa rara nos dias de hoje.
  Um mal intencionado poderia ver nessa fita um amontoado de clichês, mas fiquem atentos: aqui temos uma obra de cara limpa, carinhosa e honesta com seus personagens, sem o cinismo que impregna dez entre dez fitas dramáticas ou românticas que assistimos hoje em dia. Esse é um filme cujas habilidades do diretor e elenco só encontram par no cinema americano dos anos 70. Não é pouco.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Django Livre (Django Unchained, Dir. Quentin Tarantino, EUA, 2012, 164 min.)

Não é fácil descrever o cinema de Quentin Tarantino conforme ele evolui de filme para filme. A cada obra o salto ornamental em termos de estilo e estrutura é tão grande que fica difícil fazer uma crítica completa após apenas uma 'assistida' de Django Livre, sua nova obra-prima. Os pontos básicos, o que me chamou mais a atenção numa primeira visita foi:

*Christoph Waltz: O sensacional ator austríaco emplaca outro tipo único na galeria tarantiniana e se confirma como mais um talismã do diretor, nos moldes de Sam Jackson em Pulp Fiction e Jackie Brown e Uma Thurman em Pulp e Kill Bill. Na pele do caçador de recompensas e dentista-caixeiro viajante King Schultz, Waltz rouba cada cena em que aparece e declama os diálogos de Tarantino com a voracidade que Branagh faria Shakespeare. Ainda sofrendo a comparação com o inesquecível Coronel Landa de Bastardos Inglórios, ele ignora esse fato e praticamente obriga cada parceiro em cena ( Jamie Foxx, Kerry Washington, Leo DiCaprio, Sam Jackson, todos ótimos) a elevar o nível de atuação em cada sequência em que ele está. Ele é o coração de Django Livre, e sua química com Jamie Foxx é o fator que ganha a simpatia da audiência durante o filme.

*Roteiro Linear: Pela primeira vez em sua obra, Tarantino conta sua história de maneira linear e portanto climática. Respeitando os cânones do cinema de western, ele vai construindo uma história de vingança que lentamente vai acelerando até chegar num clímax monumental, talvez o maior tiroteio da história do cinema desde The Killer .(John Woo, 1989) Enquanto costura até o cume do filme, a paciência do espectador é sempre recompensada por sequências de suspense eficientes e diálogos afiados. Confirma-se aqui que na sua revisão dos gêneros cinematográficos, a grande proposta de sua obra, Tarantino sabe o que deve subverter e o que deve manter intacto: agora não é hora de avanços e deslocamentos temporais, de loucuras no roteiro. Django Livre é um spaghetti western clássico, contado de maneira clássica, mas com toda a subversão de conteúdo que caracteriza a obra do cineasta.

*Violência absurda, bem utilizada e estilizada: Ao narrar a história de um escravo recém libertado por um caçador de recompensas e que juntos vão atrás de uma mulher refém do maléfico proprietário de terras, o realizador ambienta sua obra na América pré-Guerra Civil, o Texas no auge do racismo, da escravidão. Talvez a época mais violenta daquele país; um momento na história que a consciência coletiva faz questão de esquecer até hoje. Tarantino mexe nesse vespeiro com sua finesse habitual: testemunhamos de camarote o show de horrores perpetrados contra os negros de maneira explícita, gráfica. Um ataque de cães, uma cela solitária chamada 'hot box', o açoitamento, a castração, lutas de mandingos...nada escapa ao olhar punitivo de Tarantino. É como se ele jogasse de volta na cara da América todo o horror e violência brutal com seu gosto habitual pelo humor negro, mas aqui não: o sentimento que brota da violência infligida contra o ser humano em 'Django..' só causa asco e alimenta a torcida para a virada do escravo caçador de recompensas no final. Pela primeira vez, Tarantino usa a violência com uma justificativa muito nobre: manipular o público e dissecar o show de horror que foi a escravidão na América. Já a violência estilizada dos inúmeros tiroteios tem uma raíz mais cinematográfica: o sangue que espirra com intensidade maior até do que em Kill Bill vem em linha direta de Peckinpah em The Wild Bunch, Scarface de De Palma e principalmente John Woo em The Killer. Ao mesmo tempo em que reconhece a intensidade histórica e a seriedade do contexto, Tarantino sempre nos lembra seu mantra primordial: o cinema vence, sem concessões.

*Uso épico da trilha sonora: assim como em seus filmes anteriores, o diretor faz uso magistral das canções da trilha sonora para criar momentos únicos. Aqui não é exceção. Tarantino é o diretor moderno que melhor entende e faz uso da música em filmes. A diferença é que com o tempo ele está sabendo dosar melhor ainda quando e onde inserir música e ampliar o impacto emocional das cenas. Assim como um Scorsese nos seus melhores momentos, Tarantino não cria clipes dentro do seu filme: ele torna as cenas épicas ainda mais intensas através da substituição da palavra pela canção, e assim, junto com a edição certeira, consegue tornar memoráveis sequências que nas mãos de outros diretores seriam apenas transição ou montagens dentro do filme. Ele sabe que música aliada a imagem é a forma mais potente de cinema, lição aprendida com Sergio Leone. Bingo.

*Um criador já autoconsciente do seu estilo: Cinéfilo atento, pode reparar: após Kill Bill, ficou claro que Quentin Tarantino vislumbrou e assimilou um estilo próprio de direção. Em outras palavras, desde então o homem está apaixonado pela sua habilidade de artesão e criador de regras em seu próprio 'tarantinoverso'. Em Pulp Fiction e Cães de Aluguel ele burilou uma forma de cinema que ele mesmo não reconhecia, pelo frescor da realização e pela juventude. Em Jackie Brown ele estranhou um pouco e pareceu indeciso sobre qual direção seguir, e o resultado foi mais uma meditação sobre cinema policial do que um filme policial em si. Mas de Kill Bill em diante, tomou as rédeas do seu estilo de direção e consistentemente, filme após filme, reafirma sua simbologia própria e recria situações citando outras já suas. O tema da vingança e suas variações permeia sua obra desde Kill Bill, mas os desenlaces sempre são inesperados e diferentes. Ao mesmo tempo, já é consciente da familiaridade do público com sua obra e usa esse conhecimento para subverter e perverter as criações vindouras. Se no início de carreira tudo remetia a outros filmes e outras simbologias da cultura pop, agora Tarantino sabe que já é parte dessa cultura e pode reconstruir signos e símbolos usando sua própria obra como ponto de partida. Nesse sentido, o Django de Jamie Foxx se une à 'Noiva' Beatrixx Kiddo, e ao Tenente Aldo Raine, numa linhagem de personagens de gênero: seja Western, Kung-Fu ou Guerra, todos são filhos legítimos das resoluções cinematográficas de Tarantino.

*Cinema ainda importa: Toda vez que Quentin Tarantino vai para trás das câmeras, ele parece nos lembrar a festa que é ir ver filmes, a alegria pura de se fazer cinema. Esse é um realizador que nasceu no berço do cinema popular, os cinemas de rua, drive-ins e as videolocadoras, os intermináveis 'corujões' da vida, onde pôde presenciar todo tipo de cinema sem distinção e cultivar o melhor e o pior da sétima arte sem preconceito algum. Cada filme seu é um ritual de celebração do poder do cinema, do fato que seja em um dvd ou bluray, mas principalmente numa sala de cinema, ainda é 'o' filme o responsável pela formação de novos cinéfilos, neófitos interessados ou simplesmente apreciadores fiéis de uma sala escura com uma tela enorme, som potente, e uma boa história sendo contada. 'Django Livre' é mais uma tradução em celulóide  dessa linha de raciocínio, e é por esse amor ao cinema que Tarantino deve ser venerado. Ele sabe que isso aqui é muito mais que business, uma coisa de sangue mesmo. O último 'believer' do cinema americano, um verdadeiro herói da resistência. Um artista comprometido com sua arte, genial e irresponsável, como deve ser. Em sua mais nova extravagância, sua magnum opus. Bravo!