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quinta-feira, 5 de junho de 2014

ADULTOS BRINCAM QUE SÃO DEUSES (Sobre o fim do Ira! como o conhecemos)

Araraquara é uma cidade do interior de São Paulo, situada à mais de 300km da capital. Eu não sou de Araraquara. Nasci em São Paulo, mais precisamente no bairro do Bom Retiro, onde vivi até meus onze anos de idade. Depois mudei-me com meus pais para Araraquara, terra de meus avós. Hoje tenho 33 anos. Moro em Araraquara há mais de vinte anos e gosto daqui. Mas eu sou de São Paulo. Minha infância por lá não foi colorida, nem ensolarada. Fui feliz sim, mas brincando em corredores de prédios de apartamentos velhos (mais informações, favor assistir "O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias", dir. Cao Hamburguer, BRA, 2006). E uma memória recorrente da minha infância é ficar preso em enormes congestionamentos, sentado no banco de trás do carro, olhando a cidade à noite, com o asfalto molhado pela chuva onipresente misturada ao neon das fachadas, lojas, outdoors. O cheiro de fumaça, poluição. Eu tive bronquite. Eu era introspectivo e lia gibis, assistia filmes. Achava as garotas bonitas, mas poucas vezes tive chance ou coragem de dizer. Não tinha muitos amigos e gostava da minha família. Estudei em colégio católico e sempre gostei de tempo frio, de chuva.

Mas minha juventude de fato eu vivi em Araraquara. Aqui eu conheci tudo de bom e ruim e muito pior que a vida pode oferecer. E conheci o Sol, um puta calor. Uma mudança radical sem dúvida, que venho digerindo até hoje. Vivo em processo de metalinguagem da minha própria vida. Um eterno 'E se?', sempre paira na minha cabeça quando a vida, essa danada, me propõe encruzilhadas tão difíceis de resolver que prefiro fugir. Mas em Araraquara eu conheci o IRA!. E junto com essa banda maravilhosa conheci a glória e os descaminhos do rock'n'roll. E o IRA! me lembrou, súbito, quem eu sou, de onde eu vim, porque eu era diferente, porque eu me sentia separado de todos os grupos, afinal.

O IRA! foi uma banda de rock'n'roll paulistana, da Vila Mariana. Usando a cidade de São Paulo como pano de fundo, incorporava o ideário da rebeldia adolescente numa roupagem musical furiosa, rústica e que nunca pedia desculpas. Marcos Valadão, o Nasi, era o vocalista impetuoso, briguento, bonachão. Edgard Scandurra, o gênio da guitarra invertida, compositor atormentado, líder de honra, dono do brinquedo. Ricardo Gaspa, o baixista dando o ritmo, impassível, íntegro. E André Jung, a fúria na bateria, básico e pesado, sem firulas.

Quanto mais eu conhecia a história da banda e ouvia os discos, mais me identificava com a postura, o som. Palavra terrivelmente mal usada nos dias que correm, mas vá lá: a atitude desses caras. Eu tinha vinte anos, menos de vinte, enquanto eles entravam numa onda de sucesso devido à MTV, disco ao vivo, muita badalação. Turnês extensas. Mas o público fiel do IRA! vinha desde os anos 80, e eu era o quê? A segunda geração que já conhecia a banda? Chegavam os anos 2000.

E o IRA! sempre visitou Araraquara, sempre visitou o interior de São Paulo. Eu gostava disso. Conheci a banda em cima do palco e ali eles sempre foram extasiantes. As referências eram inúmeras. E através das indicações de Nasi e Scandurra em longas entrevistas na finada revista SHOWBIZZ, fui atrás vorazmente, de The Jam. The Who. Hip-Hop. Mutantes. Black Music. Wire. E eu entendi a linhagem herdada da rebeldia, que nunca abaixava a cabeça, nunca se conformava.

A carreira do IRA!, do meu ponto de vista, foi irretocável. Eles nunca foram banais. Quando tiveram que se curvar ao mercado, fizeram o óbvio de maneira diferente. Zoaram e atazanaram Liminha, o baixista dos Mutantes e produtor conceituado dentro do estúdio. Saíram com um disco clássico que influenciou até a geração Mangue Beat (Psicoacústica), outro influenciado por eletrônica que ninguém deu muita bola (Você não Sabe Quem Eu Sou). Quando lançaram um registro acústico, saíram em turnê plugados, eletrificados, invertendo as expectativas dos que achavam que eles faziam um som inofensivo. Ninguém pegava o IRA!. Eles foram imbatíveis no seu próprio jogo. Traçando um paralelo com este que vos fala, eles aprontaram todas, pensando que eram imortais. Por um tempo de fato, foram.

E como toda história do rock, os excessos, a estrada e as diferenças resultaram num baita quebra-pau épico, conhecido por todos. Que é, afinal, o encerramento digno de toda boa banda de rock. Alguém realmente acredita em apertar as mãos e cada um ir para o seu lado? Não no rock'n'roll. Claro que existem os Stones e os Rolling Stones sempre serão os Rolling Stones, intocáveis na minha imaginação, heróis do impossível. Capazes de reconciliações infinitas e sorrisos (quase) sinceros de uns para os outros no palco, capazes (ainda) de emocionar trintões, quarentões, cinquentões, sessentões, ah, você já entendeu onde eu quero chegar.

Mas para todos aqueles que não são os Stones, o sonho é muito distante. Algumas pendências entre amigos cobram um preço caro demais, e esta noite no SESC Araraquara, elas estavam todas estampadas no rosto de Nasi. O IRA!, quis o destino, voltou pela metade, sim. Mas o coração da razão, este ficou abandonado em algum lugar na estrada, lugar no tempo em que mesmo chapadíssimos de todas as substâncias inimagináveis, Nasi e Scandurra formavam uma unidade, junto com Gaspa e Jung. Eles eram uma gangue, e esse era o espírito da coisa.

Agora não mais. O público desta noite se divide entre jovens preocupados com seus celulares, casais felizes, saudáveis e também com seus celulares, famílias completas que encaram a coisa toda como um piquenique e alguns trintões deslocados como eu, que mal podem esperar a hora das luzes abaixarem para que a banda toque e disfarce toda sua inabilidade social ao mesmo tempo em que incendeie seus sonhos elétricos mais impossíveis. Não aconteceu nem uma coisa nem outra. A banda selvagem de outrora deu lugar à um grupo seguro, que toca os hits profissionalmente, implacável. As canções são incríveis e se sustentam quase sozinhas, mas como cantou BB King, 'the thrill is gone'. O barato se foi.

Nasi parecia meio perdido, olhando o público com um inegável ar de agradecimento, mas algo não batia. Ele e Edgard Scandurra trataram de se evitar durante quase 100 minutos de show. Eu me pergunto o quão surreal, doloroso e difícil deve ser isso, pois são caras que se conheceram na escola. Eu vi Nasi tentar interação, mas Signore Scandurra não deu brecha. Distribuiu sorrisos e solos, e deixou claro que estava tocando para o público, não para a banda. Eles não se olham mais, não sorriem um para o outro, e foi isso o que eu mais senti falta neste show. Porque um show do IRA! sem essa conexão não é um bom show da banda, nem de longe.

Eu sei que todo mundo cresce e precisa ganhar dinheiro. Compreendo que para boa parte da platéia, não faz diferença. A formação atual do IRA! vai excursionar por quase dois anos, e talvez gravar um disco de canções inéditas depois. Dado o que vi há poucos instantes, pergunto: qual a razão? Quantas dessas pessoas vão comprar um disco de inéditas do IRA!, é o que me pergunto. Qual é a motivação do IRA!, afinal? Vão virar uma banda dinossauro, exatamente o que eles detestavam na juventude? Eu pensei muito enquanto assistia ao show em Pete Townshend, na frase "Hope I Die Before I get Old"("espero morrer antes de ficar velho").

Tenho 33 anos e o IRA! um pouco menos, ou mais, de acordo com os relatos sobre a origem da banda. É uma idade complicada...quando o cabra deixa a idiotice adolescente de lado pelo que lhe soa mais 'seguro', com resultados quase sempre desastrosos. Aquelas viagens épicas de vinte e poucos anos, pode esquecer, xará. Mas a loucura, o ímpeto selvagem, nunca abandona a pessoa. Algumas conseguem manter esse equilíbrio e preservar o coração vívido e a razão. Outros se apagam, viram esboços do que eram antes. Desconhecidos para os próprios amigos e familiares. Seguem vivos, mas o brilho se vai, e nunca mais conseguem recapturar.

Sinto informar que não posso concluir esse texto honestamente emitindo uma opinião exata sobre o que vi no palco do SESC Araraquara hoje. Eles são meus heróis, e aos heróis sempre será concedido o benefício da dúvida. Envelhecer bem é para poucos, e a gente faz o que pode. Pessoalmente minha versão do IRA! favorita é a selvagem, descontrolada, à beira da destruição, de alma punk, com o coração na boca, transbordando romantismo. Uma gangue de perdedores da Vila Mariana que encontraram no rock a chance de virar a mesa, de escrever seu próprio livrinho de regras. E eles conseguiram; viveram e morreram por essas regras. O IRA! que vi hoje é seguro, profissional, e sem alma. O Nasi clássico, o Nasi da lata, da copa de 70, desbocado e marginal, não estava lá. Não havia interlocutor, seja da banda ou do público. Todo mundo gritou e bateu palma, mas isso é o clichê do clichê, o inverso da proposta original da música rock, que em sua origem consistia em arrancar as poltronas durante a exibição de "Jailhouse Rock".

Nada disso. Me despedi da banda e tomei uma cerveja num carrinho de cachorro-quente, lá fora. A cerveja não é mais um símbolo de transgressão ou sinal de noitada. É mais um item, uma obrigação no circo temático da coisa, assim como a garrafa de Red Label que Nasi sorveu lentamente durante a extensão do show.

Então, o que sobra do bom e velho rock'n'roll?

Rock'n'roll, eu espero, está sendo feito neste exato momento por jovens muito jovens, mal-educados, deselegantes, que mal sabem se expressar e estão loucos para devorar o mundo todo de uma vez só com sua versão do rock'n'roll, que será rap, funk, pop ou sabe-se-lá, ainda bem. Eles não fazem ideia de que serão engolidos pela máquina e em 10, 20, 30 anos talvez, vão virar uma versão aguada deles mesmos tocando para os pais dos garotos que amavam sua música. E agora esses garotos escrevem textos ressentidos e raivosos como este aqui, justamente porque eles vêem todo seu ideal de rebeldia transformado num greatest hits alá Roupa Nova endossado justamente pelas pessoas que a banda no início dizia odiar. Isso é crescer? É evoluir? Não é justo dizer adeus ao IRA!. Eu sempre os apoiarei venha o que vier. Então digo adeus à mim mesmo, que lamentavelmente cresci e não consigo mais preservar a capacidade de me enganar e me embriagar regularmente, irresponsavelmente. E isso, meus amigos, quer dizer que o rock acabou.

domingo, 25 de maio de 2014

PULP FICTION - TEMPO DE VIOLÊNCIA (Pulp Fiction, EUA, 1994, 157min. Dir.Quentin Tarantino)

 No momento em que este texto é escrito, contam-se exatamente 20 anos desde que Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, foi lançado. Assim, por mais atemporal que seja, o filme é talvez cria de uma era, também.

 Pulp Fiction será o assunto deste texto. É o filme mais importante na minha vida até hoje - não me recordo bem como eu estava me sentindo quando ele saiu. Ele assumiu na época a importância de um farol, uma luz nas praias longínquas das trevas; e mais, era uma prova de que havia algo a ser expressado artisticamente além do niilismo e destruição dos filmes de gênero reinantes na época. Eu tinha 14 anos. Não pretendo contar a história sobre como o filme foi feito. Ou pior, recontar pela enésima vez a história de Tarantino, quase uma fábula. Vou apenas me ater às minhas observações, sem qualquer pretensão de arquivista ou historiador do cinema. Todo mundo conhece esse filme, afinal. Este é o meu recorte sobre ele.

 Sobre o brilhantismo de Tarantino: criando uma dinâmica perfeita que desrespeita a narrativa clássica ao mesmo tempo em que conduz os acontecimentos à um clímax emocional irrepreensível, ele vai levando o filme de crescendo em crescendo, intercalando momentos de tensão maníaca com silêncios gigantescos, pontos de interrogação que nos deixam estatelados no chão, sem cama elástica. Um encontro do matador de aluguel (Travolta, em desempenho definitivo) com a mulher do chefão (Uma Thurman, entrando direto no imaginário popular usando o cabelo da musa de Godard, Anna Karina) transcorre como uma comédia romântica amalucada dos anos 50, uma cruza de Rock Hudson-Doris Day com Jailhouse Rock, tudo temperado com drogas e milkshake de $5 dólares.

 E num singelo momento, tudo isso muda. Thurman puxa Travolta para a pista de dança, um concurso de twist. Ali Tarantino confirma sua capacidade de criação infinita. Talvez seja, no fim das contas, a conscientização do milagre da vida condensado em um instante, com seu concomitante inevitável, o vislumbre vertiginoso da capacidade de se machucar e da capacidade de infligir a dor.

A cena da dança:


E Travolta, o pobre capanga que leva a mulher do chefão para um programinha inocente, está irremediavelmente apaixonado por esta mulher. Ele não sente culpa, apenas medo. Medo das consequências. Por um breve instante, eles chegam á casa dela sozinhos, e o prenúncio de uma noite agradável se anuncia. Ela coloca no sistema de som sua música favorita e Travolta vai ao banheiro. O diretor e sua editora, a já falecida Sally Menke, costuram a euforia drogada de Thurman e a dúvida de Travolta. No cinema de Tarantino, mata-se à rodo sim, mas são as questões ÉTICAS que chamam atenção. Vejamos:


 Em seguida, claro que nada dá certo. Thurman sofre uma overdose de heroína e cabe a Travolta o papel de herói trágico e apaixonado, que não irá comer a mulher do patrão, mas sim salvá-la da morte e posteriormente idealizá-la para sempre, num beijo de despedida romântico. Como o próprio diz dentro do banheiro alguns instantes atrás: "Perceba, meu caro. Isso é um teste moral com a finalidade de descobrir se você é capaz de manter lealdade! Porque ser leal é muito importante!" Não consumar o destino sexual de Travolta com Uma Thurman é uma das milhares de transgressões de Tarantino em Pulp Fiction. E é com certeza uma das coisas mais perversas que eu já vi um artista fazendo em toda a minha vida. Claro, é sensacional: deixa um nó nas nossas entranhas, estamos alucinados e babando por mais, mas sabemos muito bem que vimos e sentimos algo especial.

 Daí em diante o filme segue esse jogo de inversão de expectativas. São muitos os momentos em que Tarantino desconstrói a figura do herói e questiona o próprio tecido narrativo do cinema americano. O autor desmonta a linearidade cronológica de tal forma que não permite estabelecer um tempo presente como referência, o que inviabiliza falar que estamos perante flashbacks. Cabe referir-se a histórias interconectadas narradas fora de ordem cronológica sim, porém, sem uma determinação de tempo presente, passado e futuro, estratégia por vezes utilizada no cinema moderno. Pulp Fiction questiona não a existência de uma realidade, mas a possibilidade de aprendê-la, minando tanto o estatuto de verdade da imagem como a veracidade verbal. As histórias que os personagens contam verbalmente, assim como as três histórias e o epílogo que compõem o filme, têm lacunas que criam um sentido ambíguo e fragmentário. O filme questiona o potencial de realidade de suas imagens, evocando a ambiguidade e o poder imaginativo de narrativas não realistas. A revolução de Tarantino, que enraivece os caretas e não conseguiu ser copiada por seus inúmeros imitadores é a rejeição da lógica naturalista do cinema clássico, que concebe o cinema como uma janela ao mundo, uma lógica de transparência. Tarantino herda inegavelmente essa ordem transgressora de Godard. Um cinema que evoca referências do cinema clássico sim, mas não a estrutura.

Quando chegamos aos instantes finais da obra, Jules e Vincent, os matadores de aluguel, encontram-se no meio de um assalto sugerido no prólogo do filme. Existe um impasse, que esteticamente deve aos filmes de John Woo, o diretor chinês que reinventou o cinema de ação nos anos 90 com seus filmes "O Matador" e "Fervura Máxima".

Mas ideologicamente a praia de Tarantino é outra. Apesar de prenunciar e celebrar uma atitude relaxada (cool), tendente ao diálogo e ao pragmatismo, favorece acordos entre partes. Em vez dos confrontos sanguinolentos e desastrosos de Cães de Aluguel, em Pulp Fiction os conflitos dão lugar a acordos, atos de perdão e reconciliações.

Pulp Fiction busca o resgate de um sentido de moral ante a decadência de uma moral coletiva de origem e concepção cristãs. O filme postula a validade e a necessidade de delimitar uma ética, centrada numa idéia de honestidade mais acorde com a realidade de uma sociedade individualista e hedonista, em que o consumo é a atividade principal, que coloniza todas as esferas da vida cotidiana. Os personagens deste filme defendem conceitos como a lealdade e a amizade, que dependem de reciprocidade entre as partes.

A opção final de Jules Winnifield, de largar o crime para pregar a palavra de Deus, indica uma saída da sociedade de consumo e do materialismo, rejeitada por Vincent Vega, que afirma que essa opção o transformará num mendigo. Caminho de saída que esboça uma crítica ao consumo, confirmada no filme seguinte do cineasta, Jackie Brown. No projeto moral de Pulp Fiction, há mais questionamentos e dúvidas do que certezas, e há contradições internas que sinalizam mais um processo de busca de uma moral do que uma visão já amadurecida e fechada sobre o assunto.

 Mas essa análise é como eu disse no início, apenas uma breve análise sobre o aspecto formal da obra, notadamente revolucionário. Eu reconheço o anacronismo da citação '...no meu tempo...', mas deixe-me dizer que com a chegada de Tarantino como um cineasta novo e vital, o surgimento de bandas como o Nirvana e posteriormente Oasis deflagrando uma nova revolução na música popular, respectivamente nos Estados Unidos e Inglaterra; mais uma nova onda de desenhistas e criadores que tomaram de assalto a cena das histórias em quadrinhos, fundando uma nova batelada de editoras independentes, a década de 90 foi um lugar maravilhoso para um moleque fissurado por cinema, rock e gibis. Todo o conceito de 'indie' que hoje foi criminosamente pervertido e engarrafado para as próximas gerações surgiu aqui. Não cabe citar aqui quem foi absorvido pela indústria e se tornou referência comercial inclusive, o popular 'se vendeu'. Ser cooptado pela indústria não é necessariamente sinal de queda de qualidade na produção criativa, como o próprio Tarantino prova até hoje.

O que importa é que através dessa obra, eu cheguei à literatura policial de Dashiell Hammett, ao cinema de Martin Scorsese e Godard, junto com um renovado interesse pelas cinematografias do mundo todo. Os desdobramentos vão desde a descoberta de Glauber Rocha e o cinema novo até a nova onda do cinema italiano agora, em 2014, liderada por Paolo Sorrentino e seu notável "A Grande Beleza". Trocando em miúdos, Quentin Tarantino renovou meu interesse pelo cinema e melhor, incitou o diálogo sobre cinema. É isso que eu faço aqui, neste blog. E esse interesse e vontade de diálogo são algumas das razões para muitas pessoas escreverem sobre filmes ou fazê-los, formarem bandas, publicarem livros, poesias, histórias em quadrinhos...é a renovação do sangue, necessária na arte e na vida. Na minha opinião, tudo isso é Pulp Fiction.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

X-MEN: DIAS DE UM FUTURO ESQUECIDO (X-Men: Days Of Future Past, EUA, 2014, 131min. Dir. Bryan Singer)

Uma curiosidade:

Em 2014, a Marvel Comics completa 75 anos de publicações.

É interessante observar que na logo comemorativa constam apenas - em silhuetas icônicas - respectivamente, O Homem-Aranha, Capitão América, Hulk e Homem-de-Ferro. Mas é bom que seja assim. Os X-Men, cria de Stan Lee e Jack Kirby e de mais um punhado de visionários, são um grupo de párias, excluídos sob qualquer condição. Mesmo sendo os mais vendidos da editora, mesmo sendo estrelas de sete (!) filmes, numa série que não dá sinais de parada. Comercial e criativamente, nos quadrinhos e agora no cinema, os X-Men são os párias mais cool que eu consigo pensar na cultura pop. Neste fabuloso "X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido", quem recupera esse bem-vindo status é o diretor e artista responsável pela concepção da série nos cinemas desde 2000, Bryan Singer.

Seus primeiros X-Men e X-Men 2 são luminares que conduziram filmes baseados em histórias em quadrinhos de volta ao panteão das grandes produções. Vale lembrar que esses mais Blade de Stephen Norrington e os dois primeiros Homem-Aranha de Sam Raimi, deram o tom que todas as outras obras de gibi seguiram posteriormente. Vale lembrar que esses criadores trabalharam com os personagens da Marvel dentro de grandes estúdios, o que implicava restrições criativas diversas, ainda que não prejudicando o resultado final. No caso dos X-Men, a debandada de Bryan Singer, trocando os mutantes por decisões de carreira equivocadas e a entrada de diretores menores, sem pulso firme e pegada autoral, como Brett Ratner e Gavin Hood, gerou filmes medíocres como X-Men: O Confronto Final e X-Men Origens: Wolverine. A esperança dos fãs da série parecia ir pelo ralo junto com a qualidade da série, que como comprovou Wolverine ano passado, só parecia despencar.

Todo esse preâmbulo apenas para dizer que paralelo à ascensão da Marvel Filmes e seus bilhões faturados com Os Vingadores, Homem de Ferro, Thor e Capitão América, alguma cabeça pensante na FOX deve ter colocado a mão na consciência. E assim como X-Men: Primeira Classe, do brilhante Matthew Vaughn já prenunciava uma volta ao glorioso estilo de Singer, com o próprio produzindo, é com prazer que eu informo a você - que gosta dos X-Men e sabe como é bom o conceito - o quanto essa série é bacana: "X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido" é o filme dos mutantes que eu esperava há mais de dez anos, mais precisamente desde o final de X-Men 2.

Usando com inspiração todo o cânone dos personagens construído na mitologia do cinema, Singer e o roteirista Simon Kinberg trazem ainda a inspiração da HQ Dias de Um Futuro Esquecido, escrita por Chris Claremont e desenhada por John Byrne nos anos 80. Mas tudo é ponto de partida para um desenvolvimento inusitado, original, transgressor de regras e que ao mesmo tempo honra as raízes do comic book. Principalmente, dos primeiros filmes, crias de Singer, mais o Primeira Classe dirigido por Vaughn.

A história é derivativa, mas como toda boa ficção científica, deliciosa, implausível e cheia de possibilidades.

Num futuro dominado pelos Sentinelas, máquinas criadas para localizar e eliminar mutantes, a raça humana está á beira da extinção. Quem sobrou vive em campos de prisioneiros (uma analogia com o primeiro filme da série, os campos de concentração do nazismo), como fugitivo ou escravizado, colaborador de robôs. Aliados nesse futuro possível, Charles Xavier (Patrick Stewart) e Magneto (Ian McKellen) criam um plano para transferir a consciência de um deles para sua versão do passado a fim de impedir um assassinato que selou o destino da humanidade e a construção dos sentinelas pelas mãos do empresário Bolivar Trask (Peter Dinklage). Entretanto, apenas Wolverine (Hugh Jackman, de volta á melhor fase do personagem, uma mescla de Clint Eastwood/ Dirty Harry com os desenhos em movimento de Jim Lee) é capaz de suportar o estresse físico da viagem devido ao seu fator de cura. Assim, Logan se voluntaria para voltar aos anos 70.

E daí em diante começa a diversão. Em pouco mais de duas horas, tantos detalhes, referências pipocam na tela que é melhor listar sem ordem tudo que eu consegui captar numa primeira visita à "Dias de Um Futuro Esquecido":
 * O velocista Mercúrio (o novato Evan Peters, brilhante), no filme apenas intitulado 'Peter', é dono da melhor cena do filme e possivelmente da melhor cena de ação de 2014. E ainda existe uma menção ao garoto ser filho de Magneto. Vamos ver como isso se desenrola nos próximos filmes.
 * Singer entende o personagem Wolverine melhor do que nenhum diretor. Parece protagonista, mas funciona de fato como coadjuvante de luxo, um durão-motherfucker-com-coração-de-ouro indestrutível, ao mesmo tempo em que boa parte da trama é ancorada no carisma dele. Hugh Jackman faz aqui sua melhor representação do personagem desde o segundo filme da série. Vai ser um baita desafio para a Marvel substituir esse cara, e assim como Bond para Sean Connery, o próximo que usar as garras do mutante canadense vai sofrer inevitavelmente com a comparação.
 * Jennifer Lawrence como Mística prova que mesmo a maquiagem mais pesada não é capaz de esconder a... Exuberância e o... Talento desta jovem atriz. E tenho dito.  
 * O sabor de Além da Imaginação, de toda a ficção científica de boa cepa desenvolvida por gênios como Irwin Allen e Gene Rodenberry, está aqui. Inclusive uma referência ao seriado Star Trek original. Singer é trekkie fanático, e sabe que boa Sci-fi se faz com idéias, e não com CGI.
 * Longe de ser spoiler, mas que final, que clímax absurdo de bom. A costura das duas linhas temporais, a ação incessante e a conclusão da trama deixa qualquer fã salivando pelo que virá a seguir.
 * A constatação de que X-Men foi, é, e sempre será sobre a dicotomia Charles Xavier/Magneto. São duas visões que entendem de maneira diferente o mundo que os rodeia e os rejeita. Por mais que a trama dê voltas, e tente encontrar antagonistas, o cerne do universo dos mutantes é essa disputa ideológica que sempre extrapola a diplomacia e tem consequências desastrosas.
  *A trilha sonora com a fanfarra clássica da série, composta por John Ottman, responsável também  pela montagem preciosa e a ambientação nos anos 70, influência declarada no cinema de Singer. Tudo funciona.

 Mais detalhes virão numa revisão atenta, mas o que dá para dizer agora é que se você ficou feliz com a surpresa que foi o primeiro filme da série, se gostou mais ainda do segundo, detestou a lambança cometida por Ratner no terceiro filme, assim como esses terríveis filmes solo do Wolverine...  E no fim das contas, viu luz no fim do túnel com X-Men: Primeira Classe... Então eu te digo que "Dias de um Futuro Esquecido" é a melhor versão dos mutantes na tela grande até agora. Não é apenas um grande filme ou adaptação boa dos quadrinhos, mas um passo necessário para colocar de volta aos trilhos uma franquia que parecia desconjuntada, agora num único universo coerente e funcional, cheio de possibilidades.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, dir. Martin Scorsese, EUA, 2014, 180 min.)

Direto e reto: nada poderia me preparar para a maravilha de filme que é "O Lobo de Wall Street". Afundando o pé no acelerador por três horas memoráveis e que passam como um raio, ele, Martin Scorsese, o cineasta no topo da cadeia cinematográfica norte-americana, entrega um filme urgente e com frescor de moleque, um pé bem dado no saco do politicamente correto jamais pedindo desculpas, ao mesmo tempo em que nunca perde de vista o cerne moral da história que quer contar.

E é um filme tão grandioso e cheio de pequenos detalhes que apenas uma visita ao cinema não faz jus à grandiosidade e ao alcance de seus significados. É sobre um correntista, Jordan Belfort, que se tornou o maior vendedor de ações da história dos EUA ilegalmente e extorquiu, roubou, manipulou, consumiu quantidades gargantuescas de drogas legais e ilegais; foi preso por todo tipo de estelionato possível praticado contra seus próprios colegas e compradores de ações. Ainda assim, saiu da prisão com status de guru motivacional e escreveu a história toda, aqui adaptada pelo superlativo Terence Winter, roteirista de "Família Soprano".

Leonardo DiCaprio está no auge de sua carreira, sob a batuta do seu mentor. Este é o papel de sua vida. Ele está perfeito em cada fotograma e nos conduz durante 180 minutos de filme. Nunca deixa de ser genial. Repulsivo, enojante, amoral e corrompido sim, mas não menos carismático. O elenco é espetacular e não deixa espaço para mediocridade: Jonah Hill, Rob Reiner, Margot Robbie, Matthew Mc Conaughey numa ponta espetacular, Kyle Chandler, Jean Dujardin, Joanna Lumley, Kenneth Choi, P.J.Byrne, Henry Zebrowski, Brian Sacca, Ethan Suplee , Bo Dietl...eu não quero deixar ninguém de fora.

Tematicamente, a proeza realizada pelo autor e sua equipe é contextualizar esse filme dentro de sua obra. Dentro do seu interesse, da sua temática. A batalha travada por imigrantes italianos, irlandeses, poloneses, de classe média baixa, rumo à uma vida melhor, ou ao menos mais relevante. A história da vida e dos pais de Scorsese. A culpa católica, a pressão divina por aquilo que parece certo ou errado e a penalidade gerada pelo pecado. A busca por transcender limites de uma vida banal carregada de mediocridade, mesmo que isso lhe leve ao caminho ético oposto. E a alegria adolescente de se levar uma vida irresponsável de transgressões (me vem à mente o Henry Hill defendido com brilhantismo por Ray Liotta em "Os Bons Companheiros" dizendo que o trabalho das 9 às 5 da tarde, 7 dias por semana, é coisa para os idiotas), novamente cobrando um preço caro demais para se pagar.

Existe um momento sublime em "O Lobo de Wall Street" que é quando Belfort (Di Caprio) está num restaurante americano típico, uma lanchonete frequentada por todo tipo de 'blue collar guys', a classe trabalhadora que luta por um horizonte mais plausível. Ele está numa mesa rodeado por descendentes de orientais, italianos, poloneses, irlandeses. Essa é a sua futura equipe. Esses são os excluídos do sonho americano, buscando pela porta dos fundos a entrada triunfal através do dinheiro e reconhecimento. Eles não querem o conforto de um trabalho medíocre. Não tem muito estudo e mesmo conceito de moral alguma. Belfort e sua gangue querem muito dinheiro, pelos métodos que forem necessários. Não existe sinal de escrúpulo, de decência. Mas ao mesmo tempo Scorsese direciona um olhar cristão, piedoso, à essa galeria de transgressores, de perdedores. A cena evolui, conduzida formidavelmente e ao fundo ouve-se uma canção de Billy Joel, escrita em 1977, chamada "Movin Out":                                    

                                         

Segundo Billy Joel, em suas próprias palavras, a canção é 'sobre cada imigrante irlandês, polonês e italiano tentando ganhar a vida na América'. Basicamente a letra versa sobre o desgosto do artista com as aspirações levianas da classe média baixa, que trabalha incessantemente perseguindo uma vida burguesa, para emitir sinais à sociedade de que conseguiu se dar bem, ao menos economicamente. Joel comenta com ironia e alguma raiva essa rejeição das raízes operárias. A letra prossegue, proclamando que ao final dessa vida vazia, as recompensas podem muito bem ser um 'ataque cardíaco' ou uma 'hérnia de disco'. O refrão surge majestoso, uma mudança de ritmo melancólica em que o cantor dá a cartada final:


               " It seems such a waste of time                           ( Parece uma enorme perda de tempo)

                 If that's what it's all about                                     (Se é apenas isso que tudo significa)
                 Mama, if that's movin 'up, i'm movin' out  (Mãe, se isso é ascensão, estou caindo fora)"
  
E voltamos ao filme, onde a canção acaba de funcionar perfeitamente como comentário e contraponto a história contada, ajudando a inserir esse conto sobre excessos nas obsessões temáticas de Scorsese. Eu sinceramente não consigo imaginar um encontro recente mais feliz de forma e conteúdo, de música e imagem trabalhando em total sintonia para ilustrar uma visão de mundo tão afiada, tão precisa. A canção pop aqui não funciona como mero acessório estilístico, ela se torna parte efetiva do conteúdo da cena.


O momento atual e o colapso do liberalismo frágil e brilhante é o legado que Martin Scorsese nos deixa ao final de "O Lobo de Wall Street".Sonhos de ter tudo, agora, se foram; o filme acaba com uma cena sobre compromisso e responsabilidade sobre o que você quer, talvez uma celebração do aprendizado de levar apenas o que você pode levar, talvez uma ilusão do que você merece, porque o tempo passou, e as regras mudaram. Há algum tempo o diretor faz parte da aristocracia da cultura popular, mas esse filme nos lembra que ele lutou exatamente pelo que queria, e conseguiu. Isso há quase quarenta anos atrás. E ele sabe melhor do que qualquer um que ninguém pode viver de uma memória, uma memória daquela sensação de domínio que o tomou quando? em 72? em 1976? 



Ilustrando essa passagem de tempo e as consequentes transformações, existe um diálogo fenomenal, entre uma tia da esposa de Belfort e o próprio, quando este vai à Inglaterra visitá-la para discretamente pedir sua ajuda num esquema internacional de lavagem de dinheiro. A personagem da tia, interpretada por Joanna Lumley, está na terceira idade, mas não seus olhos, sua percepção. De alguma forma, ela reconhece o personagem de Di Caprio com simpatia e porque não, condescendência. Ele reconhece nela vivacidade, vontade de vida, luxúria e talvez um passado de excessos. E ela devolve tudo num olhar compreensivo que não julga o turbilhão que se passa na cabeça do jovem empresário. Enquanto ele tenta justificar para a velha senhora seus vícios e descalabros e até mesmo seduzi-la com um flerte descabido, ela o interrompe e diz: 



'- Meu jovem, calma. Temos nossas responsabilidades. Cuide de minha sobrinha, e eu cuido do que você me pediu.'



E é claro, Belfort/Di Caprio dá de ombros para a responsabilidade e volta para a festa, sem escalas.



Esse recorte geracional de reconhecimento e fuga dos modelos de responsabilidade é uma adição aos temas abordados por Scorsese. Trocando em miúdos, sua visão moralista e reprovadora do comportamento de Jordan Belfort que se concretiza ao final do filme não passa sem o reconhecimento dos seus excessos de jovem. Pois o próprio diretor já reconheceu céu e inferno em sua vida particular e sabe encarar com sobriedade e distanciamento os dois. Esse chamado de responsabilidade, que vem após a festa, se abate sob o personagem principal apenas no final de sua via-crúcis napoleônica. Não há mais tempo. O filme acelera. A vida alcança Jordan Belfort, e ele pagará pelo que fez.



Em "O Lobo de Wall Street" você pode encontrar todas as facetas que o cinema de Martin Scorsese já encarnou - o questionamento do perdão, a criminalidade rebelde, a busca por um herói num mundo corrompido e claro, os cavaleiros da vida acelerada - por quase quatro décadas. Mas no fim existe o verdadeiro aceno para os anos 2000 - mais difíceis de engolir, um vinho bem mais forte. "O Lobo de Wall Street" não encontra eco nos filmes de máfia, a comparação mais óbvia. Ecoa muito mais forte em "Taxi Driver": ambos são filmes que não pretendem mais dominar as pessoas, mas buscam um domínio incerto sobre as situações bem mais desesperadoras que os anos por vir estão prestes a impor.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Robocop (Dir. José Padilha, EUA, 2014, 117min.)

O primeiro "Robocop" foi dirigido por Paul Verhoeven em 1987 e hoje ainda é influencial para minha geração. Fez parte de um pacote da cultura pop que incluiu "O Cavaleiro das Trevas" de Frank Miller e "Watchmen" de Alan Moore nas HQs. Revisões no mito do herói muito bem-vindas, executadas por autores completamente cientes do que estavam fazendo: estocadas irônicas na 'Era Reagan', no perigo do fascismo pelas mãos dos vigilantes.

Corta para 2014 e José Padilha é um cara muito ciente do que está fazendo. Tem visão clara sobre os temas que aborda e consegue entregar a encomenda direitinho. Seus "Tropa de Elite" tem o equilíbrio perfeito entre denúncia social com tintas de documentário e o thriller policial de procedimento. Esse estilo e garra trouxeram ele até esta refilmagem. Uma visão invulgar, denotando responsabilidade para com o material original e com a legião de fãs ávida (e transtornada) desde que a primeira foto do robô caiu na internet.

Exagero. Padilha e seu roteirista Joshua Zetumer pegaram do original apenas o conceito: um policial assassinado brutalmente transformado num ciborgue e vendido por uma grande corporação à população como a resolução do caos urbano, enquanto alivia a barra de políticos corruptos e força policial cada vez mais enfraquecida e desacreditada. É fácil ver porque o diretor abraçou esse material com tanta voracidade. É o cenário de "Tropa de Elite" extrapolado para a ficção-científica americana, o que permitiu a ele incluir muito bem-vindas sacaneadas no atual status quo da política externa americana, bem como o militarismo exacerbado apoiado pela mídia de direita alá Fox News e a cada vez maior possibilidade das máquinas assumirem o comando no front de guerra, via drones e outros meios de controle tático.

Daí ser desigual a comparação com o filme de 87. O 'zeitgeist' agora é outro e o personagem e sua jornada de herói são inseridos nesse novo contexto. Isso significa uma miríade de subtextos, pontos de vista e camadas que resultam num filme razoavelmente complexo, acima da média do material lançado no gênero ultimamente. Nos anos 80, época em que a política e as forças armadas se levavam cada vez mais a sério nos EUA, Verhoeven sabia que a única maneira de fazer um comentário realmente relevante seria esculachando, exagerando, apelando para a sátira de tintas fortes. Hoje vivemos um tempo em que qualquer sátira empalidece diante da corrupção do Estado, que corre livre, delirante, sem amarras. Padilha sabe disso e abre mão da ironia, entregando um filme complexo que não faz vilões fáceis, apesar da obrigação de estabelecer conflitos óbvios.

Esse é o maior problema deste novo "Robocop": o drama é infinitamente mais interessante que as convenções do gênero. Competente e nada mais na condução da ação, fica claro que o foco está na jornada de cada personagem, e isso pode afastar o público-alvo do filme. Lição que o diretor poderia ter aprendido melhor com Christopher Nolan e Bryan Singer: os 'fanboys' querem sim roteiro inteligente, cativante e desenvolvimento de personagens. Mas não perdoam um filme desse tipo com sequências de ação burocráticas e a descaracterização dos fetiches que no fim das contas, fazem a alegria das discussões de boteco. Sobre fetiche, me refiro ao novo visual do herói. Todo preto, nada memorável, muito longe do design icônico desenvolvido por Rob Bottin ou até mesmo a imponência de outro concorrente homem-de-lata contemporâneo, o Homem de Ferro da Marvel.

Mas se você gosta de cinema e especialmente do gênero, são falhas perdoáveis, que não tiram o brilhantismo dos acertos: temos aqui uma estréia das mais satisfatórias de um cineasta brasileiro em Hollywood, o que não é pouco. A direção de atores (Joel Kinnaman, Michael Keaton, Gary Oldman, Abbie Cornish e Samuel L. Jackson estão uniformemente ótimos e se entregando ao conceito) funciona, a fotografia de Lula Carvalho é vigorosa. E se a trilha incidental de Pedro Bronfman não chega a se impor como deveria, ao menos acerta ao invocar o tema clássico composto por Basil Poledouris para a trilogia original. José Padilha se saiu muito bem, num projeto danado desde o início. Conseguiu aparentemente fazer o filme que queria, contendo sua visão de mundo. É ficção científica boa. Se é ou não um bom filme de Robocop, aí é outra história.