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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Drive (Drive, EUA, 2011, 94 min.)

  Lembra da última vez que você viu um filme que fica dias e meses na sua mente, te impedindo de assistir qualquer outra coisa? Aquele tipo que entra na sua corrente sangüínea e ao mesmo tempo consegue a proeza de te fazer ver o mundo com uma nova trilha sonora, como se tudo dali em diante fosse banhado por uma nova luz, um pouco mais...cinematográfica. É delírio, eu sei. Mas nos colocar sob esse signo de paixão quase irresponsável não é mérito, afinal, da arte?

  Se procurarmos com atenção, com um pouco de sorte nos deparamos na hora certa com um filme que não é somente "sensacional", ou "fantástico", ou "incrível", ou meramente divertido, mas realmente substancioso. Por um processo evasivo mas tangível, alguns filmes derrubam todas as nossas defesas e dão sentido a todos os medos e desejos que evocamos neles.

  Dessa maneira, eles expõem tudo o que escondíamos no íntimo e dão um sentido a isso. Apesar de ser uma outra pessoa que conta a história, a experiência é como uma confissão. Nossas emoções disparam a loucos extremos; nos sentimos ao mesmo tempo enobrecidos e desvalorizados, redimidos e condenados. Testemunhamos que é disso que se trata a vida, que é para isso que ela serve. Porém é esse mesmo reconhecimento que nos faz entender que a vida jamais pode ser tão boa, tão inteira. Com uma clareza que a vida nos nega por suas próprias e boas razões, vemos lugares aos quais nunca poderemos chegar.

 Uma coisa assim acontece quando tem que ser.

  Drive é um filme maior, que possibilita inúmeras leituras. Todas válidas, todas possivelmente incorretas, mas principalmente é o filme de gênero mais democrático da nova década que chega. Na sua estrutura de thriller criminal, correm livremente referências que vão dos filmes de John Hugues à Jean-Pierre Melville, passando por Shane-Os Brutos Também Amam e Encontros e Desencontros. Mais uma vez a praga das múltiplas referências pode assustar o cinéfilo escolado, pensando se tratar de um carbono de Tarantino, que por sua vez já é também um derivativo.

  Mas a estrela do diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn brilha mais forte. Realizando aqui sua obra definitiva em solo estadunidense, Refn trabalha com o roteiro de Hossein Amini, baseado no romance de James Sallis. E surge como um novo referencial para esse tipo de filme. É com prazer que vemos em Drive nascer o 'pós-Tarantino': um cinema de ação construído sob um punhado de referências, mas que leva a brincadeira um passo adiante, adicionando uma pegada própria, mais minimalista. Ao mesmo tempo abertamente fetichista e emocional, causando um impacto no espectador através de som e imagem, com pouquíssimos diálogos. Provocando uma sensação de lugar e envolvimento difícil de ser encontrada no cinema atual.

 O personagem do motorista solitário, dublê em filmes de ação, mecânico e piloto de aluguel para roubos ousados é a personificação do peregrino que vaga sem motivação pela metrópole, em busca de uma causa. Um sozinho sem lar, um psicopata com um coração de ouro. É o Travis Bickle de Taxi Driver, revisitado em toda sua inocência e desesperança pelo olhar melancólico do ator Ryan Gosling, que atravessa o filme nos fazendo crer que ainda é possível seguir os passos de Pacino em Um Dia de Cão: os olhos sempre devem dizer mais sobre a motivação do personagem do que longos monólogos. Seria fácil, pelo tema do filme e a referência óbvia - carros e assaltos - ligá-lo a Steve McQueen e a tradição do cinema de ação dos anos 70, mas Refn e Gosling vão além: o que temos aqui é um homem andando na corda bamba do amor e do ódio, que pode explodir à qualquer momento. Capaz de grande selvageria, inusitada ternura e surpreendentemente lacônico. A carga emocional carregada pelo 'motorista' (assim mesmo, sem nunca revelar o nome) é um pólo de tensão que sustenta o filme.

  Na outra ponta da corda temos Irene (Carey Mulligan), o arquétipo da donzela fragilizada, em apuros, à espera do cavaleiro que virá salvá-la e derrotará o dragão. Nessa estrutura de fábula proposta pela obra, Irene e seu filho Benício são o ideal de pureza, o bem que não pode ser maculado. A atração entre ela e o 'motorista' é imediata: Refn constrói uma paixão avassaladora em planos intensos, longos, cheios de clima e acompanhados por canções atípicas, todas evocativas dos anos 80, comentando de maneira quase inocente as cenas de sedução. É um romance anunciado por quase toda a primeira metade do filme.

  Mas esse paraíso logo vai se tornar inferno com a saída do marido de Irene da prisão. Standart Gabriel (Oscar Isaac) logo vai tratar de envolver o motorista, sua mulher, seu filho e mais um punhado de coadjuvantes numa trilha de sangue que muda completamente o rumo do filme. Existe um vilão, interpretado com garra pelo veterano Albert Brooks e seu capanga, Nino (Ron Perlman). Ambos parecem ter saído das páginas da HQ 100 Balas. São caricaturais, venais, perversos. Representam o mal encarnado, a última fronteira que separa o nosso amigo motorista de levar uma vida idílica ao lado de Irene e Benício.

  Uma vez me disseram que as histórias são sempre as mesmas. Eu concordo com isso. O que realmente importa é como elas são contadas. E pode ter certeza de que o plot, o argumento de Drive não é original. Suas situações já foram revisadas centenas de vezes. Mas o olhar do diretor Refn purifica esses clichês e nos entrega uma experiência diferente de tudo já feito no gênero. Um filme de ação com sentimento, coisa rara. Filmado como se estivesse à beira do abismo e isso não é uma metáfora: sua representação transmite a sensação de que a obra está, o tempo todo, nadando contra todas as correntes.

 É claro que outros filmes virão. Nicolas Winding Refn tem 40 anos e nove filmes nas costas. Isso não é muito e eu acho que apenas Drive pode ser chamado de trabalho maduro. O que assusta em Refn é que ele está apenas começando. Considerando o que seu filme fez para mim nestes últimos dias, essa é também a afirmação mais positiva que eu consigo evocar, sobre cinema ou qualquer outra coisa.

domingo, 18 de setembro de 2011

The Driver (The Driver, EUA, 1978, 91 min.)

  E eis que o ciclo de filmes policiais anos 70/ começo dos 80 chega ao final com 'Driver', fita de 1978 que traz a direção do expert no gênero Walter Hill e é estrelada por Bruce Dern (no auge da loucura), a então novata (e linda) Isabelle Adjani, e Ryan O'Neal, galã de 'Love Story' e ' Barry Lyndon', fazendo aqui o papel-título, emulando os maneirismos de Steve McQueen, que não aceitou fazer o filme por achá-lo muito parecido com seu triunfal 'Bullitt', filmaço que revolucionou o cinema de ação em 1968, trazendo o astro fazendo suas próprias cenas de ação, dispensando dublês numa sequência rodada nas ladeiras de San Francisco dirigindo um Mustang GT 390 Fastback em manobras ousadas até para dublês veteranos.

  Mas 'Bullitt' fica para outro dia. 'Driver', um misto de faroeste moderno com perseguições insanas de carro, conta a história do personagem título, cujo nome nunca é revelado. Sua especialidade é dirigir carros em fuga para assaltantes. Seu método é minimalista, assim como seu discurso: ele simplesmente age, e esse ação é completamente descritiva. Um fora da lei que só existe em celulóide, esse 'driver' é antes de mais nada filhote de McQueen, Charles Bronson e principalmente Alain Delon em 'O Samurai', de Melville. Sua existência é definida puramente pelas missões que recebe, e essa presença taciturna faz o charme da fita. Numa época de pretensos machões, chorões que falam muito e fazem pouco, um protagonista silencioso diz muito sobre como o herói de ação era encarado há 20, 30 anos atrás. Ryan O'Neal não é um grande astro, não possui carisma, e isso colabora mais ainda com o distanciamento emocional necessário para não nos identificarmos ou torcermos pelo personagem.

  Carisma para dar e vender tem Bruce Dern, interpretando 'o detetive', policial esculachado e cheio de frases prontas que toma a perseguição contra o 'driver' de maneira pessoal. Quando Dern aparece em cena, é sempre um barato vê-lo doidão, vomitando regras furadas, discursos vazios e proferindo ameaças. Na obsessão de capturar o anti-herói, contrata uma gangue de assaltantes e os obriga à contratar o motorista para um assalto, que monitorado pela polícia pode resultar na captura que tanto deseja. É claro que as coisas se complicam, envolvendo Isabelle Adjani como uma suposta testemunha de uma das fugas espetaculares do motorista e várias reviravoltas e cenas inacreditáveis de perseguição policial.

  Curioso como esse filme simplesmente passou por baixo do radar de colecionadores e apreciadores do gênero. De fato não é uma fita que busca originalidade, mas Walter Hill, que foi colaborador de Peckinpah e dirigiu clássicos como 'Lutador de Rua' e '48 Horas' entende de ação como poucos. Sabe ser minimalista na condução do roteiro sem perder a levada acelerada do filme, e mantém o interesse tanto em cenas movimentadas (muito bem conduzidas numa Los Angeles sempre notívaga) quanto em cenas íntimas, de interiores, onde a sordidez dos ambientes como hotéis baratos, botecos e ruas mal-iluminadas contrastam muito bem com a ambigüidade dos personagens. Destaque ainda para duas cenas de perseguição automobilística que merecem figurar entre as melhores já realizadas até hoje.

   Encerro aqui esse pequeno ciclo que revisou de maneira modesta três filmes americanos um pouco mais obscuros que, cada um à sua maneira, ajudaram a definir o cinema policial de ação adulto. Realizados por grandes diretores, são o lembrete de que o feeling e a compreensão dos símbolos e, porque não dizer, 'clichês', funcionam muito mais do que um grande orçamento e astros fabricados. Alguns diretores contemporâneos como Tarantino e Nicolas Winding Refn parecem ter herdado essa sensibilidade. Outros como Fincher e Nolan parecem retrabalhar essa iconografia e apresentá-la em novos contextos, em filmes como 'Seven' ou 'Insônia', respectivamente. Não importa. O grande barato da pesquisa e análise dos filmes  é justamente a habilidade minha e sua, que está lendo isso, de processar essas referências, encontrar pontos de intersecção nas idéias e abordagens desses grandes autores e, com o tempo, desenvolver uma nova maneira de apreciar filmes que numa primeira projeção parecem banais na superfície, mas que tem muito a oferecer. Basta olhar com um pouco mais de atenção.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Viver e Morrer em Los Angeles (To Live and Die in L.A., EUA, 1985, 117 min.)

   Hoje é a data de estréia nos cinemas americanos daquele que possivelmente se tornará o grande filme do ano para amantes dos filmes de ação mezzo Pulpy/ Noir: Drive, de Nicolas Winding Refn. E esse blog divulga a crítica do segundo filme que faz parte do  pequeno ciclo de obras que serviram como fonte de inspiração para o diretor Refn na realização de seu novo trabalho.

  'Viver e Morrer em Los Angeles' é um filme policial que conta uma história muito simples: um detetive de Los Angeles (William Petersen, que trabalhou com Michael Mann em Manhunter e posteriormente se tornou astro da série de TV C.S.I.) sai à caça de um sociopata falsificador de notas, interpretado com verve pelo grande Willem Dafoe.

  Tomando partido desse argumento batido, William Friedkin faz aqui seu melhor filme desde  'Sorcerer-Comboio do Medo', refilmagem de 'O Salário do Medo' que Clouzot realizara em 1953 e Friedkin refilmara com Roy Scheider em 1977. Friedkin é diretor com mão pesada, que se encaixa perfeitamente em projetos como os seminais Operação França e O Exorcista. É uma questão de gosto pelo lado escuro da natureza humana, um modo de ver o mundo que para um filme como esse 'Viver e Morrer em L.A.' caiu de maneira perfeita.

  A Los Angeles retratada pelo filme é a dos becos-sem-saída, dos ferro-velhos: suja, feia, perigosa. Acompanhamos a descida ao inferno do detetive ao mesmo tempo em que Friedkin faz a tradução visual da decadência moral descrita no roteiro. É um mundo de traidores: informantes, traficantes, policiais. Ninguém sai ileso, mas ao mesmo há um senso de beleza meio esquisito que nos lembra: estamos em 1985. Isso aqui ainda é antes de Tarantino, antes do ultra-realismo de Paul Greengrass. Há uma influência forte de Miami Vice, e por extensão, o nome recorrente ao cinema policial da época: Michael Mann. É uma busca pelo realismo que se traduz mais no modus operandi de mocinhos e bandidos (Friedkin declara nos extras do dvd que trabalhou com vários consultores policiais para dar verossimilhança à linguagem e ações dos personagens, coisa inédita para a época) do que no aspecto plástico do filme, coloridíssimo e pontuado por canções típicas da época, emulando os sintetizadores de Giorgio Moroder ou a própria trilha sonora de Thief composta pelo grupo Tangerine Dream.

  Friedkin ficou famoso pela sua perseguição de carros em Operação França e aqui ele retoma essa regra obrigatória que faz parte do cânone das produções policiais americanas. Por dez minutos, acompanhamos, quase sem diálogos, um longo exercício de estilo, onde a câmera do diretor não mede esforços para nos inserir no meio de uma frenética corrida de carros. Merece entrar para a lista das grandes cenas de ação já filmadas. Contando na época apenas com logística e uma vontade feroz de realizar uma sequência das mais ousadas já concebidas, Friedkin e seus colaboradores interditaram várias ruas de Los Angeles. Rodaram, durante o dia, talvez a maior perseguição de carros realizada nos anos 80. É uma marca registrada do diretor que aqui se adequou perfeitamente ao material. Ele ainda tentaria uma cena parecida, mas dessa vez com resultados desastrosos, no péssimo filme' Jade', fita de 94 com David Caruso e Linda Fiorentino.

  Curioso observar que 'Viver e Morrer em L.A.' não é mesmo o tipo de filme sobrevivente ao teste do tempo. Pelo contrário. Seu charme reside justamente em sua inadequação, em como ficou congelado em seu retrato de uma época de exageros e imperfeições. Mas são justamente essas imperfeições que fazem do filme tão esquisito e interessante, quase um alienígena ao meio das produções realizadas na época. É a marca do diretor William Friedkin, que mesmo irregular, sempre faz de seus filmes experiências memoráveis. Felizmente, esse filme é mais um exemplar do seu virtuosismo na direção de fitas policiais.


(No terceiro e último filme do ciclo, comentarei o filme 'Driver', produção de 1978, dirigido por Walter Hill, com Ryan O'Neal, Bruce Dern e Isabelle Adjani.)

sábado, 10 de setembro de 2011

Profissão, Ladrão (Thief, EUA, 1981, 117 min.)

   Após um longo tempo sem postar neste blog, o escriba que vos fala poderia comentar muitos filmes novos que já foram vistos e devidamente absorvidos (A Árvore da Vida, Um Sonho de Amor, entre outros), mas devido à proximidade da estréia nos EUA daquele que pode se tornar o grande filme de 2011, Drive, de Nicolas Winding Refn, esse blog começa aqui um pequeno ciclo de três filmes quintessenciais para se entender o cinema de ação do final dos anos 70/começo dos 80, pré-Duro de Matar. Fitas policias herdeiras de alguma estrutura dos faroestes e sempre dirigidas por grandes nomes como Michael Mann, William Friedkin e Walter Hill. Como já consegui apurar por sites e revistas importadas, esse subgênero cinematográfico foi o referencial do diretor Refn para a realização de Drive. Então nada mais justo do que revisitar filmes aparentemente esquecidos por aí, nas prateleiras das locadoras, nos canais da Tv a cabo, nos torrents da vida.

  Hoje é com muita satisfação que comento o grande filme Thief- Profissão Ladrão, obra de 1981 que marcou a estréia de Michael Mann na direção de longas para cinema. É estrelado por James Cann em atuação extraordinária, coadjuvado por Tuesday Weld, James Belushi e Robert Prosky.

  O personagem-título é um negociante de carros usados, Frank (James Caan), ex-presidiário que ganha a vida de fato realizando roubos ousados de jóias, arromabando cofres com grandes somas de dinheiro. Seu código de ética para os assaltos envolve sempre trabalhar sozinho e nunca roubar artefatos que possam ser rastreados- coleções, títulos do tesouro nacional ou moedas raras estão fora de seu escopo de ação.

  Seu único homem de confiança é Barry (James Belushi), fiel escudeiro nos roubos e de caráter inabalável. Tirando isso, Frank é essencialmente um solitário. Ganha a vida como seu próprio patrão e aprecia viver sempre por contratos abertos, nunca se apegando à nada. Evita qualquer conexão com gangues e outros criminosos, até conhecer Jesse (Tuesday Weld), garota misteriosa que age aplicando golpes aqui e ali, cujo passado insinua uma conexão com traficantes de drogas e chefões do crime.

   Não demora para um relacionamento começar entre os dois e Frank decide, súbito, que sua vida solitária e instável já não o satisfaz mais. Agora, com uma mulher em quem pode confiar e uma vida mais estável pela frente, ele quer mesmo é criar uma família, morar numa casa simples no subúrbio e abandonar os crimes de vez.

   E nada é tão simples assim. Frank, inspirado pela obsessão em mudar o rumo de sua vida, faz um pacto com o demônio. Leo (Robert Prosky), chefe do crime organizado, reconhece o talento de Frank e o alicia, junto à uma equipe suspeita, para realizar um grande assalto. E para o bem e para o mal, pode ser o último da carreira de Frank. Daí para frente o destino desses personagens está irremediavelmente selado. Não há saídas fáceis, soluções absurdas.

  Admito: Michael Mann é o diretor que de trinta anos para cá melhor soube utilizar os clichês do Grande Policial Noir Americano (assim mesmo, em maiúsculas) em favor de um cinema viril, sanguinolento, com grande senso de ética e uma ambição, uma busca quase extra-sensorial por uma espécie de Santo Graal que não existe nesse mundo físico em que nós e seus personagens habitam. Em todos seus filmes Mann discute o peso da tarefa, as relações de trabalho dentro dos moldes herdados do Faroeste. São homens que existem estritamente nos limites das funções que exercem. A vida é simplesmente uma aposta, e para Frank, voltar à prisão significa a morte. Um parti-pris ideológico muito parecido com o de Neil McCauley em Fogo Contra Fogo, vivido por Robert DeNiro. São estereótipos batidos, que nas mãos hábeis de Mann ganham um novo significado, justamente por sua obsessão em nunca fazer uma releitura ou sátira desse tipo de comportamento. Seu cinema se leva muito à sério, e até hoje suas fitas Collateral, Inimigos Públicos e Miami Vice continuam a trabalhar essa visão ética herdada do cinema americano dos anos 70 e dos romances policiais Noir de Raymond Chandler. Não há espaço para o humor negro feito de citações e colagens de um Tarantino por aqui.

Outra observação que não poderia passar despercebida é o tratamento que Michael Mann confere à ambientação dos personagens na cidade de Los Angeles. É como se para ele a cidade fosse uma musa idealizada, passível de vida apenas à noite. Ou melhor: esses personagens, marginais por convicção, saem de suas 'tocas' e realizam seus negócios ilegais sempre após a meia-noite, quando existem apenas para as luzes, distorcidas no contra-plano, quase uma pop-art que funde essa galeria de losers do sonho americano numa moldura poética, urbana e impiedosa, um deserto sentimental em plena cidade, sempre de madrugada. Ao mesmo tempo, assim como no Taxi Driver de Scorsese, é perceptível o interesse que o diretor nutre por essas figuras, transformando-nos em testemunhas de seus sonhos que não se realizarão e suas ambições impossíveis. Uma megalomania quase romântica que encontra ressonância em um momento da cultura americana muito especial, o final dos anos 70/início dos 80, quando Bruce Springsteen cantava sua ode aos excluídos, Darkness On The Edge Of Town, sobre becos sem saída e homens que não tinham outra escolha a não ser cumprir um destino trágico; mas para nosso deleite quase voyeurístico, muito cinematográfico. Não é uma crítica social, é apenas uma iconografia muito forte, um painel dos anti-heróis fracassados que sempre terão seu réquiem de luxo nas mãos de grandes realizadores como Mann.

   Um comentário aqui para aquela que após O Poderoso Chefão, é provavelmente a grande atuação de James Caan. Há uma cena em que Frank se encontra com Jesse em um desses restaurantes de beira de estrada que só existem no imaginário americano. E que cena extraordinária. Em pouco mais de dez minutos, esperando um café e um hambúrguer, Frank relata a Jesse toda sua trajetória: como fez para sobreviver na cadeia, o forte código de ética que desenvolveu; seus sonhos; suas fraquezas...tudo é desenvolvido por Caan num monólogo arrepiante, evocando de imediato as cenas de Brando com Eva Marie-Saint em Sindicato de Ladrões. É um momento único e definidor da motivação do personagem. Ao mesmo tempo, o revela vulnerável a tal ponto que invoca uma tristeza, uma melancolia cara à todos os personagens de Mann. É uma consciência de que todos personagens do filme, exceto Jesse (Tuesday Weld), não chegarão vivos ao final.

Michael Mann, o último dos grandes diretores de ação americanos - Bravo!


(Próximo filme do ciclo ação/policial 70-80: 'Viver e Morrer em Los Angeles', de William Friedkin)