Lembra da última vez que você viu um filme que fica dias e meses na sua mente, te impedindo de assistir qualquer outra coisa? Aquele tipo que entra na sua corrente sangüínea e ao mesmo tempo consegue a proeza de te fazer ver o mundo com uma nova trilha sonora, como se tudo dali em diante fosse banhado por uma nova luz, um pouco mais...cinematográfica. É delírio, eu sei. Mas nos colocar sob esse signo de paixão quase irresponsável não é mérito, afinal, da arte?
Se procurarmos com atenção, com um pouco de sorte nos deparamos na hora certa com um filme que não é somente "sensacional", ou "fantástico", ou "incrível", ou meramente divertido, mas realmente substancioso. Por um processo evasivo mas tangível, alguns filmes derrubam todas as nossas defesas e dão sentido a todos os medos e desejos que evocamos neles.
Dessa maneira, eles expõem tudo o que escondíamos no íntimo e dão um sentido a isso. Apesar de ser uma outra pessoa que conta a história, a experiência é como uma confissão. Nossas emoções disparam a loucos extremos; nos sentimos ao mesmo tempo enobrecidos e desvalorizados, redimidos e condenados. Testemunhamos que é disso que se trata a vida, que é para isso que ela serve. Porém é esse mesmo reconhecimento que nos faz entender que a vida jamais pode ser tão boa, tão inteira. Com uma clareza que a vida nos nega por suas próprias e boas razões, vemos lugares aos quais nunca poderemos chegar.
Uma coisa assim acontece quando tem que ser.
Drive é um filme maior, que possibilita inúmeras leituras. Todas válidas, todas possivelmente incorretas, mas principalmente é o filme de gênero mais democrático da nova década que chega. Na sua estrutura de thriller criminal, correm livremente referências que vão dos filmes de John Hugues à Jean-Pierre Melville, passando por Shane-Os Brutos Também Amam e Encontros e Desencontros. Mais uma vez a praga das múltiplas referências pode assustar o cinéfilo escolado, pensando se tratar de um carbono de Tarantino, que por sua vez já é também um derivativo.
Mas a estrela do diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn brilha mais forte. Realizando aqui sua obra definitiva em solo estadunidense, Refn trabalha com o roteiro de Hossein Amini, baseado no romance de James Sallis. E surge como um novo referencial para esse tipo de filme. É com prazer que vemos em Drive nascer o 'pós-Tarantino': um cinema de ação construído sob um punhado de referências, mas que leva a brincadeira um passo adiante, adicionando uma pegada própria, mais minimalista. Ao mesmo tempo abertamente fetichista e emocional, causando um impacto no espectador através de som e imagem, com pouquíssimos diálogos. Provocando uma sensação de lugar e envolvimento difícil de ser encontrada no cinema atual.
O personagem do motorista solitário, dublê em filmes de ação, mecânico e piloto de aluguel para roubos ousados é a personificação do peregrino que vaga sem motivação pela metrópole, em busca de uma causa. Um sozinho sem lar, um psicopata com um coração de ouro. É o Travis Bickle de Taxi Driver, revisitado em toda sua inocência e desesperança pelo olhar melancólico do ator Ryan Gosling, que atravessa o filme nos fazendo crer que ainda é possível seguir os passos de Pacino em Um Dia de Cão: os olhos sempre devem dizer mais sobre a motivação do personagem do que longos monólogos. Seria fácil, pelo tema do filme e a referência óbvia - carros e assaltos - ligá-lo a Steve McQueen e a tradição do cinema de ação dos anos 70, mas Refn e Gosling vão além: o que temos aqui é um homem andando na corda bamba do amor e do ódio, que pode explodir à qualquer momento. Capaz de grande selvageria, inusitada ternura e surpreendentemente lacônico. A carga emocional carregada pelo 'motorista' (assim mesmo, sem nunca revelar o nome) é um pólo de tensão que sustenta o filme.
Na outra ponta da corda temos Irene (Carey Mulligan), o arquétipo da donzela fragilizada, em apuros, à espera do cavaleiro que virá salvá-la e derrotará o dragão. Nessa estrutura de fábula proposta pela obra, Irene e seu filho Benício são o ideal de pureza, o bem que não pode ser maculado. A atração entre ela e o 'motorista' é imediata: Refn constrói uma paixão avassaladora em planos intensos, longos, cheios de clima e acompanhados por canções atípicas, todas evocativas dos anos 80, comentando de maneira quase inocente as cenas de sedução. É um romance anunciado por quase toda a primeira metade do filme.
Mas esse paraíso logo vai se tornar inferno com a saída do marido de Irene da prisão. Standart Gabriel (Oscar Isaac) logo vai tratar de envolver o motorista, sua mulher, seu filho e mais um punhado de coadjuvantes numa trilha de sangue que muda completamente o rumo do filme. Existe um vilão, interpretado com garra pelo veterano Albert Brooks e seu capanga, Nino (Ron Perlman). Ambos parecem ter saído das páginas da HQ 100 Balas. São caricaturais, venais, perversos. Representam o mal encarnado, a última fronteira que separa o nosso amigo motorista de levar uma vida idílica ao lado de Irene e Benício.
Uma vez me disseram que as histórias são sempre as mesmas. Eu concordo com isso. O que realmente importa é como elas são contadas. E pode ter certeza de que o plot, o argumento de Drive não é original. Suas situações já foram revisadas centenas de vezes. Mas o olhar do diretor Refn purifica esses clichês e nos entrega uma experiência diferente de tudo já feito no gênero. Um filme de ação com sentimento, coisa rara. Filmado como se estivesse à beira do abismo e isso não é uma metáfora: sua representação transmite a sensação de que a obra está, o tempo todo, nadando contra todas as correntes.
É claro que outros filmes virão. Nicolas Winding Refn tem 40 anos e nove filmes nas costas. Isso não é muito e eu acho que apenas Drive pode ser chamado de trabalho maduro. O que assusta em Refn é que ele está apenas começando. Considerando o que seu filme fez para mim nestes últimos dias, essa é também a afirmação mais positiva que eu consigo evocar, sobre cinema ou qualquer outra coisa.
Levada por sua maravilhosa crítica, assisti Drive,e não me decepcionou nenhum pouco, apesar de não ser meu gênero preferido de filme.Teus comentários são sempre ótimos e ajudam aqueles que como eu gosta muito de cinema, mas não é tão aficionado como você, a reparar em coisas, detalhes, que passariam desapercebidos de outro modo.Ainda bem que você criou esse blog para continuar contribuindo e compartilhando.Valeu Bruno, abraços...
ResponderExcluirObrigado Shanti, a luta continua. Vamos ver se agora com essa pausa no final de ano consigo atualizar os posts com mais regularidade. mas fico feliz que tenha gostado do Drive. É um filme que aqui no Brasil, com certeza não vai encontrar grande público, então acho que vale a pena divulgar com empolgação...abraço!
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