Powered By Blogger

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

ETTORE SCOLA *10/05/1931 +19/01/2016


E eis que sai de cena Ettore Scola, aos 84 anos. Verdadeiro presente da cinematografia italiana para o mundo todo, o realizador conseguiu em sua vasta obra concretizar um olhar sobre a humanidade sempre caustico e bem-humorado, sincero e ingênuo, aguçado e porque não dizer, gentil. Sempre costurando momentos históricos com pendengas íntimas, Scola conseguiu incutir em obras como Feios, Sujos e Malvados , Nós Que Nos Amávamos Tanto,  Um Dia Muito Especial, O Baile, Splendor, Concorrência Desleal e tantas outras uma dose de humanismo e solidariedade que consolidou sua voz de artista pleno, o diferenciando de cineastas como Fellini, Antonioni e Monicelli.
Trabalhou com Mastroianni, Sophia Loren, Massimo Troisi, Monica Vitti, Jack Lemmon, Vittorio Gassman, Nino Manfredi, Stefania Sandrelli e uma infinidade de colaboradores.

Seu último filme data de 2013: Que Estranho Chamar-se Federico prestou homenagem à Fellini, um misto de ficção e documentário onde Scola compartilhou suas memórias sobre o mestre e mentor. Reconhecendo a influência que recebeu de Fellini, Scola exibia sua modéstia e pareceu até o fim esconder com humildade a grandiosidade de seu cinema, que influenciou tantos outros cineastas.  Foi brilhante do início ao fim, e toda sua filmografia merece revisão. Vai fazer falta, mas sua obra permanecerá.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

DAVID BOWIE (* 08/01/1947 + 10/01/2016)


Bowie sabia, meus amigos. Ele sabia tudo, absolutamente tudo. É algo indiscutível. Ele ensinou gerações inteiras a sonhar coisas que nem sabiam sonhar, ensinou toda a classe musical como deve ser feito, desde os anos 60 até anteontem, quando lançou seu réquiem, Blackstar, que agora assume outro significado completamente diferente.

Influenciou absolutamente todo mundo que eu e você tem como ídolo.

Portanto, ele é mais que ídolo.

Ele é elemento central na tabela periódica do cenário cultural dos últimos cinquenta anos. É natural para mim dizer que amo David Bowie porque é dele a primeira música que eu tirei na bateria, a primeira música em que eu entendi como era bom ficar bêbado com estilo, a influência que veio junto com os Rolling Stones. Ele estava nos meus filmes favoritos, musicou a vanguarda da Europa com sua trilogia de Berlin Low/Heroes/Lodger, recriou o funk/soul americano em Young Americans, inventou o rock teatral com seu Ziggy Stardust, foi Nikolai Tesla em O Grande Truque de Christopher Nolan. Isso para não deixar de mencionar Fome de Viver e O Homem que Caiu na Terra, indispensáveis. Suas canções foram irretocáveis. Uma delas me inspirou a dar o nome desse blog que você está lendo agora. 

Bowie, do início ao fim você foi o proto rebelde, o primeiro na fila da transgressão estilosa, ensinou a todos nós, ensinou tudo. Enquanto Rebel Rebel ecoa nas caixas de som do meu quarto, te agradeço por tudo, mesmo que você não saiba agora. Definitivamente, tempos bem piores virão em sua ausência. Ainda assim continuaremos caçando ilusões.

Adeus baby, e bons sonhos.

domingo, 10 de janeiro de 2016

OS 10 MELHORES FILMES DE 2015

10 - CREED (Dir. Ryan Coogler)



09 - QUE HORAS ELA VOLTA? (Dir. Anna Muylaert)



08 - O CLÃ (Dir. Pablo Trapero)



07 - MISTRESS AMERICA (Dir. Noah Baumbach)



06 - SICARIO (Dir. Dennis Villeneuve)



05 - THE WOLFPACK (Dir. Crystal Moselle)



04 - YOUTH (Dir. Paolo Sorrentino)



03 - O REGRESSO (Dir. Alejandro González Iñarritú)



02 - MAD MAX - ESTRADA DA FÚRIA (Dir. George Miller)



01 - OS OITO ODIADOS (Dir. Quentin Tarantino)


OS 10 MELHORES DISCOS DE 2015

10 - NEW ORDER, "Music Complete"



09 - TAME IMPALA, "Currents"



08 - THE DEAD WEATHER, "Dodge and Burn"



07 - CAGE THE ELEPHANT - "Tell me I'm Pretty"


06 - THE STRYPES, "Little Victories"



05 - ALABAMA SHAKES, "Sound and Color"



04 - KURT VILE, "B'lieve I'm Going Down"



03 - NOEL GALLAGHER'S HIGH FLYING BIRDS, "Chasing Yesterday"



2 - EAGLES OF DEATH METAL, "Zipper Down"



1- RYAN ADAMS, "Blue Light EP"/ "1989"/ "Live at The Carnegie Hall"




sábado, 9 de janeiro de 2016

OS OITO ODIADOS (THE HATEFUL EIGHT, EUA, 2015, 187 min. Dir. Quentin Tarantino)

Os Oito Odiados é mais uma fita de Quentin Tarantino destinada a ser discutida por cinéfilos do mundo todo durante muito tempo. Você pode odiar, amar, parar na metade, assistir várias vezes ou simplesmente desprezar. Certamente quem assistir até o final não será o mesmo. O filme faz você reagir, isso é um elogio.

Começa com um fiapo de trama muito bem contextualizada: o oficial de justiça John Ruth (Kurt Russell) vai levar a fugitiva Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) até Red Rock para enforcá-la e receber a recompensa. Passando pelo Wyoming no meio de uma forte nevasca, é obrigado a dar carona para o Major Marquis Warren (Samuel L.Jackson) e o novo xerife de Red Rock, o confederado Chris Mannix (Walton Goggins). Para fugir da nevasca, os quatro se refugiam numa estrebaria e restaurante à beira da estrada onde encontram mais quatro figuras peculiares: um veterano General de Guerra racista Sandy Smithers (Bruce Dern), um inglês nomeado o novo carrasco de Red Rock, Oswaldo Mobray (Tim Roth), o mexicano que cuida do local, Bob (Demian Bichir), e o pistoleiro Joe Gage (Michael Madsen). O contexto vem dessa gente toda carregar ressentimentos gravíssimos devido ao final da guerra da secessão, que dividiu os Estados Unidos. Prosseguindo com o tema já abordado em Django Livre, Tarantino faz desse encontro de párias numa cabana durante a tempestade de neve uma representação de cada nicho da América em sua construção. E as discórdias dessa mesma América surgem nas faíscas entre esses personagens, nenhum santo, vale a pena destacar. É o lugar onde o escravo vencedor vai à forra munido da outorga de Lincoln contra o branco racista; onde o colonizador inglês e o imigrante mexicano procuram seu espaço, onde a fugitiva e o homem da lei se digladiam, onde o xerife irascível e o caubói em busca de dinheiro fácil se encontram.

E nunca como em outro filme de Tarantino a violência fez tanto sentido. O rancor desse grupo de facínoras alcança uma apoteose de sangue muito simbólica. O inferno que estes personagens irão enfrentar é contraponto e ilustração perfeita do Jesus crucificado e coberto de neve na abertura do filme. Aqui não há espaço para trégua, misericórdia, perdão. Não há 'Noite Feliz' entoada no piano capaz de cessar décadas de escravagismo, violência e raiva contida. Ao ambientar essa hecatombe num ambiente claustrofóbico e de impossível escapada, o realizador nos faz pensar em sua estréia, o seminal Cães de Aluguel. A baixeza das relações e a sangueira desatada de fato fecha o ciclo com seu primeiro filme, mas também vêm à mente o retrato da miséria humana de O Tesouro de Sierra Madre, assim como a selvageria inusitada que irrompe em meio à nevasca vem em linha direta de O Enigma de Outro Mundo, aquele terror de John Carpenter onde em uma base no Alasca uma equipe de pesquisa era dizimada por um ser alienígena. A trilha de Ennio Morricone confirma essa tese, e coloca a paranóia e o sentimento de inadequação no cerne do filme. Mas a violência é o elo de união desses personagens, e o demônio que surge entre eles não é nada alienígena; vem mesmo é da mesquinharia humana. Assim como no já clássico Seven de David Fincher, a sugestão de Tarantino é que o humano destinado a rejeitar um acordo de paz está destinado a implodir, refém do mal que carrega dentro de si; a condenação final suprema da vida.

Falar sobre o brilhantismo técnico é chover no molhado, mas vale destacar que ele aposta muito mais alto que em Django Livre numa direção de atores dificílima, pois não orienta em quem o espectador deve se apoiar como bússola moral do filme. Ainda consegue de maneira soberba controlar a tensão num espaço fechado utilizando enquadramentos de câmera precisos e o poder de um texto afiado e potente para segurar o público. Consegue. É mais ambicioso e difícil que suas fitas anteriores, pois aqui, ao contrário da maioria de suas obras, existe um subtexto denso e pretensioso percorrendo todo o texto. É tudo muito carregado de significado histórico, e não há maior sinalizador disso do que a tal carta escrita por Lincoln em posse do Major Marquis. É como se existisse pairando sobre essa dança da morte macabra pelos detestáveis do título uma espécie de espírito da América, sugerindo de maneira invisível aquilo que pode ou não ser feito, o que é ou não ofensa à fundação do país. Ao final, sem dar spoilers, o que fica com o espectador é uma jornada ao coração negro e enlameado de uma nação que nunca acertou suas contas mais extremas, suas pendências mais absurdas. E se no cerne desses desacordos é onde nasce a violência, é lá que o autor está, nos presenteando com mais um épico sobre a natureza humana em suas mais sombrias vertentes, na encruzilhada do sadismo e o prazer culpado.

Sergio Leone, Sam Peckinpah, John Ford, Howard Hawks, John Carpenter, Sergio Corbucci e tantos outros foram os cineastas cujos nomes me vieram à mente durante a exibição de Os Oito Odiosos. Em quase três horas de filme Tarantino honra o legado de cada um deles e afirma o seu próprio. Seu relato de uma América em impasse é legítimo e me deixou emudecido ao final. Me perguntei sobre a validade de um filme desse quilate nos dias de hoje, se vai ter gente pensando e discutindo com paixão tudo o que foi mostrado pelo autor. Gosto de pensar que sim. Mas é uma jornada tortuosa; muitos podem ficar pelo caminho.  

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

RETROSPECTIVA TARANTINO: DJANGO LIVRE (DJANGO UNCHAINED, EUA, 2012, 165 min. Dir. Quentin Tarantino)

Hoje, três anos após o lançamento de Django Livre, seu sucesso de crítica e público o transformou na obra mais conhecida de Tarantino, aquele no qual o cineasta alcançou uma platéia enorme e diversificada. O gênero faroeste, o uso de atores muito populares e uma narrativa mais afinada com as regras clássicas confirma Django Livre no cânone de Tarantino como seu grande filme comercial, a volta da vitória após Bastardos Inglórios. É cinema imensamente satisfatório e cheio de momentos dignos de menção. Quando de seu lançamento no Brasil em janeiro de 2013, destaquei alguns fatores que me chamaram atenção e ainda conseguem. Volto a publicá-los agora:

        *Christoph Waltz: O sensacional ator austríaco emplaca outro tipo único na galeria tarantiniana e se confirma como mais um talismã do diretor, nos moldes de Sam Jackson em Pulp Fiction e Jackie Brown e Uma Thurman em Pulp e Kill Bill. Na pele do caçador de recompensas e dentista-caixeiro viajante King Schultz, Waltz rouba cada cena em que aparece e declama os diálogos de Tarantino com a voracidade que Branagh faria Shakespeare. Ainda sofrendo a comparação com o inesquecível Coronel Landa de Bastardos Inglórios, ele ignora esse fato e praticamente obriga cada parceiro em cena ( Jamie Foxx, Kerry Washington, Leo DiCaprio, Sam Jackson, todos ótimos) a elevar o nível de atuação em cada sequência em que ele está. Ele é o coração de Django Livre, e sua química com Jamie Foxx é o fator que ganha a simpatia da audiência durante o filme.

*Roteiro Linear: Pela primeira vez em sua obra, Tarantino conta sua história de maneira linear e portanto climática. Respeitando os cânones do cinema de western, ele vai construindo uma história de vingança que lentamente vai acelerando até chegar num clímax monumental, talvez o maior tiroteio da história do cinema desde The Killer (John Woo, 1989). Enquanto caminha até o ápice do filme, a paciência do espectador é sempre recompensada por sequências de suspense eficientes e diálogos afiados. Confirma-se aqui que na sua revisão dos gêneros cinematográficos, a grande proposta de sua obra, Tarantino sabe o que deve subverter e o que deve manter intacto: agora não é hora de avanços e deslocamentos temporais, de loucuras no roteiro. Django Livre é um spaghetti western clássico, contado de maneira clássica, mas com toda a subversão de conteúdo que caracteriza a obra do cineasta.

*Violência absurda, bem utilizada e estilizada: Ao narrar a história de um escravo recém libertado por um caçador de recompensas e que juntos vão atrás de uma mulher refém do maléfico proprietário de terras, o realizador ambienta sua obra na América pré-Guerra Civil, o Texas no auge do racismo, da escravidão. Talvez a época mais violenta daquele país; um momento na história que a consciência coletiva faz questão de esquecer até hoje. Tarantino mexe nesse vespeiro com sua finesse habitual: testemunhamos de camarote o show de horrores perpetrados contra os negros de maneira explícita, gráfica. Um ataque de cães, uma cela solitária chamada 'hot box', o açoitamento, a castração, lutas de mandingos...nada escapa ao olhar punitivo de Tarantino. É como se ele jogasse de volta na cara da América todo o horror e violência brutal com seu gosto habitual pelo humor negro, mas aqui não: o sentimento que brota da violência infligida contra o ser humano em Django... só causa asco e alimenta a torcida para a virada do escravo caçador de recompensas no final. Pela primeira vez, Tarantino usa a violência com uma justificativa muito nobre: manipular o público e dissecar o show de horror que foi a escravidão na América. Já a violência estilizada dos inúmeros tiroteios tem uma raíz mais cinematográfica: o sangue que espirra com intensidade maior até do que em Kill Bill vem em linha direta de Peckinpah em The Wild Bunch, Scarface de De Palma e principalmente John Woo em The Killer. Ao mesmo tempo em que reconhece a intensidade histórica e a seriedade do contexto, Tarantino sempre nos lembra seu mantra primordial: o cinema vence, sem concessões.

*Uso épico da trilha sonora: assim como em seus filmes anteriores, o diretor faz uso magistral das canções da trilha sonora para criar momentos únicos. Aqui não é exceção. Tarantino é o diretor moderno que melhor entende e faz uso da música em filmes. A diferença é que com o tempo ele está sabendo dosar melhor ainda quando e onde inserir música e ampliar o impacto emocional das cenas. Assim como um Scorsese nos seus melhores momentos, Tarantino não cria clipes dentro do seu filme: ele torna as cenas épicas ainda mais intensas através da substituição da palavra pela canção, e assim, junto com a edição certeira, consegue tornar memoráveis sequências que nas mãos de outros diretores seriam apenas transição ou montagens dentro do filme. Ele sabe que música aliada a imagem é a forma mais potente de cinema, lição aprendida com Sergio Leone. Bingo.

*Um criador já autoconsciente do seu estilo: Cinéfilo atento, pode reparar: após Kill Bill, ficou claro que Quentin Tarantino vislumbrou e assimilou um estilo próprio de direção. Em outras palavras, desde então o homem está apaixonado pela sua habilidade de artesão e criador de regras em seu próprio 'tarantinoverso'. Em Pulp Fiction e Cães de Aluguel ele burilou uma forma de cinema que ele mesmo não reconhecia, pelo frescor da realização e pela juventude. Em Jackie Brown ele estranhou um pouco e pareceu indeciso sobre qual direção seguir, e o resultado foi mais uma meditação sobre cinema policial do que um filme policial em si. Mas de Kill Bill em diante, tomou as rédeas do seu estilo de direção e consistentemente, filme após filme, reafirma sua simbologia própria e recria situações citando outras já suas. O tema da vingança e suas variações permeia sua obra desde Kill Bill, mas os desenlaces sempre são inesperados e diferentes. Ao mesmo tempo, já é consciente da familiaridade do público com sua obra e usa esse conhecimento para subverter e perverter as criações vindouras. Se no início de carreira tudo remetia a outros filmes e outras simbologias da cultura pop, agora Tarantino sabe que já é parte dessa cultura e pode reconstruir signos e símbolos usando sua própria obra como ponto de partida. Nesse sentido, o Django de Jamie Foxx se une à 'Noiva' Beatrix Kiddo, e ao Tenente Aldo Raine, numa linhagem de personagens de gênero: seja Western, Kung-Fu ou Guerra, todos são filhos legítimos das resoluções cinematográficas de Tarantino.

*Cinema ainda importa: Toda vez que Quentin Tarantino vai para trás das câmeras, ele parece nos lembrar a festa que é ir ver filmes, a alegria pura de se fazer cinema. Esse é um realizador que nasceu no berço do cinema popular, os cinemas de rua, drive-ins e as videolocadoras, os intermináveis 'corujões' da vida, onde pôde presenciar todo tipo de cinema sem distinção e cultivar o melhor e o pior da sétima arte sem preconceito algum. Cada filme seu é um ritual de celebração do poder do cinema, do fato que seja em um dvd ou bluray, mas principalmente numa sala de cinema, ainda é 'o' filme o responsável pela formação de novos cinéfilos, neófitos interessados ou simplesmente apreciadores fiéis de uma sala escura com uma tela enorme, som potente, e uma boa história sendo contada. Django Livre é mais uma tradução em celulóide  dessa linha de raciocínio, e é por esse amor ao cinema que Tarantino deve ser venerado. Ele sabe que isso aqui é muito mais que business, uma coisa de sangue mesmo. O último 'believer' do cinema americano, um verdadeiro herói da resistência. Um artista comprometido com sua arte, genial e irresponsável, como deve ser.


Finalizando essa retrospectiva, a conclusão é que minha fascinação de cinéfilo pela obra de Tarantino é de simples compreensão: ele faz filmes populares, que congraçam ao mesmo tempo em que dividem, portanto geram discussão. Ao mesmo tempo consegue ser autoral e sempre ter a sorte de trabalhar com astros populares, o que ajuda na conquista do público neófito. E agora já entra em fase de colocar sua 'marca' dentro de gêneros, assim como Kubrick fez nos anos 80 com O Iluminado, Full Metal Jacket e seu último filme, De Olhos Bem Fechados. Ele já encontrou um viés seu para contar qualquer tipo de história, e isso é raro, raríssimo de se ver. Só espero que o público continue abraçando as ousadias dele e não o tenha como um sabor do momento, ou um simples transgressor. Tarantino é um dos grandes diretores americanos de todos os tempos, e filme à filme ele luta com garra por esse título. Se realmente confirmar sua profecia de encerrar uma obra fechada de dez filmes, vai entrar para a história pelo controle de sua produção, por sua integridade. Não consigo lembrar de outro diretor com esse fôlego para com a própria obra e para surpreender o público médio de cinema. Que continue assim, até que outro moleque apaixonado por cinema tome respeitosamente (ou não) o seu lugar. E agora, já conjecturando idéias para o texto sobre seu novo míssil cinematográfico que vi ontem, Os Oito Odiados, fico pensando, um pouco triste, que se faltam realmente apenas dois filmes para o homem se retirar, vai ser um inverno longo e frio. Mas como tudo na vida, se deve ter um final digno de nota, que o faça gloriosamente em grande estilo.    

RETROSPECTIVA TARANTINO: BASTARDOS INGLÓRIOS (INGLOURIOUS BASTERDS, EUA/ALE, 2009, 153 min., Dir. Quentin Tarantino)

 Pulp Fiction foi marco definitivo dos anos 90 e consolidou Quentin Tarantino definitivamente como voz sólida e relevante no meio cinematográfico. Mas após Kill Bill e À Prova de Morte, ficou claro o desejo do autor de abandonar determinados guetos alternativos e confirmar seu talento com uma obra definitiva. Que o colocasse no panteão dos grandes mestres de todos os tempos. 

E que prazer confirmar "Bastardos Inglórios" em forma e conteúdo como a melhor obra de Quentin Tarantino, um diamante cinematográfico raro que será lembrado por décadas como o responsável por uma revolução nos filmes de guerra e mais, o filme que deu ao autor o status de cineasta internacionalmente aclamado por público e crítica.

Narrando em capítulos a história de um grupo de aliados infiltrados na França ocupada pelos nazistas para liquidar Hitler e seus asseclas, Tarantino consegue eliminar todas as armadilhas de filmes do gênero e entrega uma obra enxuta, em que cada diálogo, cada momento registrado move a trama rumo à um clímax perfeito, sem arestas.

Contou com um grupo multicultural de atores e soube dirigi-los um a um, baita desafio numa obra em que ao menos quatro línguas são faladas fluentemente por todo o elenco. A revelação maior para o público do mundo todo, inquestionavelmente, é Christoph Waltz, ator veterano da TV alemã interpretando o Coronel Landa, 'O Caçador de Judeus': um personagem sorrateiro e enigmático que entra direto na galeria dos melhores personagens já saídos da mente de Tarantino. Ainda a belíssima francesa Mélanie Laurent faz lembrar a saudosa Nastassja Kinski (inclusive com uma citação à Sangue de Pantera de Paul Schrader no uso da canção de David Bowie e Giorgio Moroder 'Cat People (Putting Out The Fire)' em sequência brilhante) e brilha no papel de Shosanna Dreyfus, uma sobrevivente judaica do massacre perpetrado por Landa na estupenda abertura do filme. Vale destacar também o astro de Adeus, Lênin, Daniel Brühl, em ótimo desempenho como o matador implacável que se apaixona por Shosanna, Frederick Zöller. O resto do elenco composto por Brad Pitt, Michael Fassbender, Til Schweiger, Diane Krueger, são todos uniformemente bem dirigidos sob a batuta de Tarantino.  

O grande trunfo de Bastardos Inglórios é notar como Tarantino consegue colocar seu apreço pelo cinema sempre no centro dos acontecimentos. Trancar Hitler e sua escória dentro de um cinema e por uma noite imaginar a sétima arte como vingadora de todos os problemas do mundo é uma metáfora potente, jamais utilizada em um filme do gênero. Ao contrário da seriedade de, por exemplo, um O Resgate do Soldado Ryan, o autor abandona qualquer fidelidade ou moralismo aliado ao acontecimento histórico e propõe uma fantasia de libertação, de catarse dos sentimentos. Isso com certeza polarizou o público, mas qualquer pessoa com o mínimo de interesse e amor por cinema sabe a operação ousada que Tarantino está fazendo, e é impossível resistir á tamanha genialidade. É um filme que fala sobre guerra, mas acima de tudo, fala sobre filmes de guerra.

Mas um filme de Tarantino resiste à categorização. Este filme é sobre tudo isso mas ao mesmo tempo seu coração existe num senso de humanidade que dialoga diretamente com quem assiste o filme. Sua 'voz' conversa com o espectador de uma maneira inusitada, como que desafiando todas as nossas pré-concepções. Você sabe que muito mostrado na tela jamais aconteceu, mas o senso de diversão e de prazer que emana das cenas chega a ser quase proibitivo de tão bom. Os atores de Tarantino devoram o texto, eles jantam cada palavra, com gusto e bravura. Ele sabe que o segredo da performance icônica é levá-la ao limite do exagero, e daí dar um passo para trás. O Coronel Landa é a prova disso: revendo o filme fica claro que ele é o ícone que define a obra. Seu tom é perigoso e brincalhão, perspicaz e gazeteiro. O filme também se situa nessas travessas.

  Quando vi Bastardos Inglórios em sua estréia, num cinema lotado em Ribeirão Preto, paguei o ingresso e entrei imediatamente na próxima sessão. No dia seguinte, fui mais uma vez. Daí entrei direto numa loja de DVDs e comprei Cidadão Kane, considerado o maior filme já feito. De alguma forma o filme de Tarantino reacendeu meu amor pelos filmes do passado e deu à minha geração um filme clássico no presente que poderemos para sempre relembrar. Depois vi Bastardos mais seis vezes em diferentes salas pelo estado de São Paulo, e o mais incrível era ver a reação das pessoas em diferentes momentos do filme. O mais lindo é que o público  de fato se envolve e REAGE ao que acontece em cena, nunca terminando o filme ileso ou indiferente. Eu fiquei emocionado e sabia que tinha presenciado algo especial, mas não consegui classificar o filme numa opinião fechada, estreita. Eu mal pude anotar a placa do caminhão que tinha me atropelado. Como manda a regra do Grande Cinema, os filmes vão te envolvendo conforme você os revê. Eles crescem no seu conceito e vão te consumindo até que você não para mais de pensar sobre eles, sobre tudo que viu. E nunca basta assistir uma vez só.

E isso, meus amigos, é o que costumamos chamar de OBRA-PRIMA.  

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

RETROSPECTIVA TARANTINO: À PROVA DE MORTE (DEATH PROOF, EUA, 2007, 113min. Dir.Quentin Tarantino)

Citação de Quentin Tarantino para a revista norte-americana Vulture, em agosto de 2015:

"Aprendi uma grande lição após Grindhouse, e desde então tento não cometer o mesmo erro. Robert Rodriguez  e eu estávamos acostumados a seguir nossos próprios caminhos desde sempre, em estradas esquisitas e interessantes, e daí o público sempre nos acompanhava. Logo, pensávamos que o público iria conosco onde quer que nós fôssemos. E Grindhouse provou que essa teoria estava errada . Ainda assim foi uma ótima experiência, mas teria sido melhor se não tivéssemos sido pegos tão de surpresa pelo desinteresse do público". 

Grindhouse foi o tributo de Tarantino e Rodriguez ao cinema B dos anos 70, consistindo numa sessão dupla de quase quatro horas. Rodriguez fez a fita de zumbis inspirada por George Romero e John Carpenter Planeta Terror, enquanto Tarantino na segunda metade exibia seu À Prova de Morte, um tributo à filmes de horror e perseguição automobilística dos anos 70 como Corrida Contra o Destino e suspenses como os de Brian De Palma, Dario Argento e também John Carpenter, visivelmente Halloween e Christine, o Carro Assassino.

Mas quis o destino que Grindhouse fosse um enorme fracasso nos Estados Unidos em sua estréia. E com as barbas de molho, Tarantino e Rodriguez trataram de separar seus filmes e os lançaram no resto do mundo como longas individuais. Uma pena, porque a experiência dos dois filmes vistos juntos é a coisa mais próxima de uma sessão maldita que Hollywood jamais ousou chegar perto em muito tempo. Mas sabendo da fraca recepção da audiência norte-americana, tratava-se de uma questão de sobrevivência dos filmes para uma platéia mundial. Sendo assim, À Prova de Morte, avaliado sozinho e tão somente por seus valores fílmicos adquire uma outra luz, muito mais interessante, dentro da obra do diretor.      

Utilizando um fiapo de história, no caso a obsessão e os procedimentos de um dublê maníaco (Stuntmen Mike, interpretado com garra pelo icônico Kurt Russell) que persegue e mata mulheres usando seu carro 'à prova de morte', Tarantino revisita toda uma tradição de filmes baratos e atores mais baratos ainda devolvendo ao gênero, criadores e intérpretes uma dignidade insuspeita, exatamente aos moldes do que fez em Cães de  Aluguel e Django Livre. Devolvendo a relevância ao western, ao filme de assalto e aqui ao thriller de horror, o criador exercita mais uma vez sua manobra favorita: reposiciona o cinema popular no berço da classe trabalhadora, eliminando quaisquer traços de elitismo ou pretensão no seu retrato sem preconceitos daquilo que o entretenimento pode ser.

Então fica claro que À Prova de Morte é o seu filme da sessão maldita de sábado à noite, para ser visto pelo espectador de preferência levemente bêbado e totalmente munido da tão famosa 'suspensão da descrença', pois tudo que é mostrado em tela não passa de um cineasta no completo comando de seu ofício e manipulando uma dezena de fetiches que compõem uma fita ousada em forma e temática. O diálogo das garotas que serão vítimas do maníaco nunca é menos que espetacular, justamente por ser tão próximo àquilo que com certeza Tarantino ouviu em milhares de conversas com jovens garotas. Elas falam com aquele ritmo, com aquela cadência, e é absolutamente crível e interessante ver essas mulheres conversando trivialidades, até o choque do momento em que o assassino entra em cena para subverter esse universo.

E a idéia da tranquilidade malemolente feminina atacada por um mundo machista e brutal se faz clara na metáfora que cruza o filme, a de um homem cru e perverso que frequentemente tenta penetrar em um universo estranho à ele na base da violência. E claro, repelido pela esperteza e traquejo de mulheres quase sempre muito mais inteligentes e sagazes que o próprio. A conclusão do filme e sua estrutura inusitada, em duas metades muito definidas, ajudam à corroborar a tese de que despretensiosamente Tarantino fez desse pequeno filme um comentário muito pertinente sobre os caminhos e descaminhos do machismo e feminismo, sem qualquer tipo de moralismo ou julgamento apressado. 

Tecnicamente a obra é um triunfo de enquadramentos deliciosamente imperfeitos, canções que comentam e melhoram cenas, e grandiosas sequências de ação que parecem sair em linha direta de um filme perdido dos anos 70. A perseguição que ocupa quase toda a segunda metade do filme é exemplar da liberdade de Tarantino em encenar com maestria algo que deve mais à Bullitt e Corrida Contra o Destino do que Velozes e Furiosos

À Prova de Morte é um dos grandes filmes de sessão maldita já feitos; se sua estética garante o prazer cinéfilo, sua aparente despretensão esconde um filme meticuloso. Numa apoteose de sangue e a sugestão iminente de sexo, carros velozes, carros destruídos e sonhos de sábado á noite não concretizados, Tarantino consegue dizer uma coisa ou duas sobre o estado dos relacionamentos humanos, sobre nosso desejo das coisas que nunca poderemos alcançar. Uma estrada percorrida com frequência, mas infinita. Um filme para revisão, sempre.