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sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

RETROSPECTIVA TARANTINO: DJANGO LIVRE (DJANGO UNCHAINED, EUA, 2012, 165 min. Dir. Quentin Tarantino)

Hoje, três anos após o lançamento de Django Livre, seu sucesso de crítica e público o transformou na obra mais conhecida de Tarantino, aquele no qual o cineasta alcançou uma platéia enorme e diversificada. O gênero faroeste, o uso de atores muito populares e uma narrativa mais afinada com as regras clássicas confirma Django Livre no cânone de Tarantino como seu grande filme comercial, a volta da vitória após Bastardos Inglórios. É cinema imensamente satisfatório e cheio de momentos dignos de menção. Quando de seu lançamento no Brasil em janeiro de 2013, destaquei alguns fatores que me chamaram atenção e ainda conseguem. Volto a publicá-los agora:

        *Christoph Waltz: O sensacional ator austríaco emplaca outro tipo único na galeria tarantiniana e se confirma como mais um talismã do diretor, nos moldes de Sam Jackson em Pulp Fiction e Jackie Brown e Uma Thurman em Pulp e Kill Bill. Na pele do caçador de recompensas e dentista-caixeiro viajante King Schultz, Waltz rouba cada cena em que aparece e declama os diálogos de Tarantino com a voracidade que Branagh faria Shakespeare. Ainda sofrendo a comparação com o inesquecível Coronel Landa de Bastardos Inglórios, ele ignora esse fato e praticamente obriga cada parceiro em cena ( Jamie Foxx, Kerry Washington, Leo DiCaprio, Sam Jackson, todos ótimos) a elevar o nível de atuação em cada sequência em que ele está. Ele é o coração de Django Livre, e sua química com Jamie Foxx é o fator que ganha a simpatia da audiência durante o filme.

*Roteiro Linear: Pela primeira vez em sua obra, Tarantino conta sua história de maneira linear e portanto climática. Respeitando os cânones do cinema de western, ele vai construindo uma história de vingança que lentamente vai acelerando até chegar num clímax monumental, talvez o maior tiroteio da história do cinema desde The Killer (John Woo, 1989). Enquanto caminha até o ápice do filme, a paciência do espectador é sempre recompensada por sequências de suspense eficientes e diálogos afiados. Confirma-se aqui que na sua revisão dos gêneros cinematográficos, a grande proposta de sua obra, Tarantino sabe o que deve subverter e o que deve manter intacto: agora não é hora de avanços e deslocamentos temporais, de loucuras no roteiro. Django Livre é um spaghetti western clássico, contado de maneira clássica, mas com toda a subversão de conteúdo que caracteriza a obra do cineasta.

*Violência absurda, bem utilizada e estilizada: Ao narrar a história de um escravo recém libertado por um caçador de recompensas e que juntos vão atrás de uma mulher refém do maléfico proprietário de terras, o realizador ambienta sua obra na América pré-Guerra Civil, o Texas no auge do racismo, da escravidão. Talvez a época mais violenta daquele país; um momento na história que a consciência coletiva faz questão de esquecer até hoje. Tarantino mexe nesse vespeiro com sua finesse habitual: testemunhamos de camarote o show de horrores perpetrados contra os negros de maneira explícita, gráfica. Um ataque de cães, uma cela solitária chamada 'hot box', o açoitamento, a castração, lutas de mandingos...nada escapa ao olhar punitivo de Tarantino. É como se ele jogasse de volta na cara da América todo o horror e violência brutal com seu gosto habitual pelo humor negro, mas aqui não: o sentimento que brota da violência infligida contra o ser humano em Django... só causa asco e alimenta a torcida para a virada do escravo caçador de recompensas no final. Pela primeira vez, Tarantino usa a violência com uma justificativa muito nobre: manipular o público e dissecar o show de horror que foi a escravidão na América. Já a violência estilizada dos inúmeros tiroteios tem uma raíz mais cinematográfica: o sangue que espirra com intensidade maior até do que em Kill Bill vem em linha direta de Peckinpah em The Wild Bunch, Scarface de De Palma e principalmente John Woo em The Killer. Ao mesmo tempo em que reconhece a intensidade histórica e a seriedade do contexto, Tarantino sempre nos lembra seu mantra primordial: o cinema vence, sem concessões.

*Uso épico da trilha sonora: assim como em seus filmes anteriores, o diretor faz uso magistral das canções da trilha sonora para criar momentos únicos. Aqui não é exceção. Tarantino é o diretor moderno que melhor entende e faz uso da música em filmes. A diferença é que com o tempo ele está sabendo dosar melhor ainda quando e onde inserir música e ampliar o impacto emocional das cenas. Assim como um Scorsese nos seus melhores momentos, Tarantino não cria clipes dentro do seu filme: ele torna as cenas épicas ainda mais intensas através da substituição da palavra pela canção, e assim, junto com a edição certeira, consegue tornar memoráveis sequências que nas mãos de outros diretores seriam apenas transição ou montagens dentro do filme. Ele sabe que música aliada a imagem é a forma mais potente de cinema, lição aprendida com Sergio Leone. Bingo.

*Um criador já autoconsciente do seu estilo: Cinéfilo atento, pode reparar: após Kill Bill, ficou claro que Quentin Tarantino vislumbrou e assimilou um estilo próprio de direção. Em outras palavras, desde então o homem está apaixonado pela sua habilidade de artesão e criador de regras em seu próprio 'tarantinoverso'. Em Pulp Fiction e Cães de Aluguel ele burilou uma forma de cinema que ele mesmo não reconhecia, pelo frescor da realização e pela juventude. Em Jackie Brown ele estranhou um pouco e pareceu indeciso sobre qual direção seguir, e o resultado foi mais uma meditação sobre cinema policial do que um filme policial em si. Mas de Kill Bill em diante, tomou as rédeas do seu estilo de direção e consistentemente, filme após filme, reafirma sua simbologia própria e recria situações citando outras já suas. O tema da vingança e suas variações permeia sua obra desde Kill Bill, mas os desenlaces sempre são inesperados e diferentes. Ao mesmo tempo, já é consciente da familiaridade do público com sua obra e usa esse conhecimento para subverter e perverter as criações vindouras. Se no início de carreira tudo remetia a outros filmes e outras simbologias da cultura pop, agora Tarantino sabe que já é parte dessa cultura e pode reconstruir signos e símbolos usando sua própria obra como ponto de partida. Nesse sentido, o Django de Jamie Foxx se une à 'Noiva' Beatrix Kiddo, e ao Tenente Aldo Raine, numa linhagem de personagens de gênero: seja Western, Kung-Fu ou Guerra, todos são filhos legítimos das resoluções cinematográficas de Tarantino.

*Cinema ainda importa: Toda vez que Quentin Tarantino vai para trás das câmeras, ele parece nos lembrar a festa que é ir ver filmes, a alegria pura de se fazer cinema. Esse é um realizador que nasceu no berço do cinema popular, os cinemas de rua, drive-ins e as videolocadoras, os intermináveis 'corujões' da vida, onde pôde presenciar todo tipo de cinema sem distinção e cultivar o melhor e o pior da sétima arte sem preconceito algum. Cada filme seu é um ritual de celebração do poder do cinema, do fato que seja em um dvd ou bluray, mas principalmente numa sala de cinema, ainda é 'o' filme o responsável pela formação de novos cinéfilos, neófitos interessados ou simplesmente apreciadores fiéis de uma sala escura com uma tela enorme, som potente, e uma boa história sendo contada. Django Livre é mais uma tradução em celulóide  dessa linha de raciocínio, e é por esse amor ao cinema que Tarantino deve ser venerado. Ele sabe que isso aqui é muito mais que business, uma coisa de sangue mesmo. O último 'believer' do cinema americano, um verdadeiro herói da resistência. Um artista comprometido com sua arte, genial e irresponsável, como deve ser.


Finalizando essa retrospectiva, a conclusão é que minha fascinação de cinéfilo pela obra de Tarantino é de simples compreensão: ele faz filmes populares, que congraçam ao mesmo tempo em que dividem, portanto geram discussão. Ao mesmo tempo consegue ser autoral e sempre ter a sorte de trabalhar com astros populares, o que ajuda na conquista do público neófito. E agora já entra em fase de colocar sua 'marca' dentro de gêneros, assim como Kubrick fez nos anos 80 com O Iluminado, Full Metal Jacket e seu último filme, De Olhos Bem Fechados. Ele já encontrou um viés seu para contar qualquer tipo de história, e isso é raro, raríssimo de se ver. Só espero que o público continue abraçando as ousadias dele e não o tenha como um sabor do momento, ou um simples transgressor. Tarantino é um dos grandes diretores americanos de todos os tempos, e filme à filme ele luta com garra por esse título. Se realmente confirmar sua profecia de encerrar uma obra fechada de dez filmes, vai entrar para a história pelo controle de sua produção, por sua integridade. Não consigo lembrar de outro diretor com esse fôlego para com a própria obra e para surpreender o público médio de cinema. Que continue assim, até que outro moleque apaixonado por cinema tome respeitosamente (ou não) o seu lugar. E agora, já conjecturando idéias para o texto sobre seu novo míssil cinematográfico que vi ontem, Os Oito Odiados, fico pensando, um pouco triste, que se faltam realmente apenas dois filmes para o homem se retirar, vai ser um inverno longo e frio. Mas como tudo na vida, se deve ter um final digno de nota, que o faça gloriosamente em grande estilo.    

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