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quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

RETROSPECTIVA TARANTINO: À PROVA DE MORTE (DEATH PROOF, EUA, 2007, 113min. Dir.Quentin Tarantino)

Citação de Quentin Tarantino para a revista norte-americana Vulture, em agosto de 2015:

"Aprendi uma grande lição após Grindhouse, e desde então tento não cometer o mesmo erro. Robert Rodriguez  e eu estávamos acostumados a seguir nossos próprios caminhos desde sempre, em estradas esquisitas e interessantes, e daí o público sempre nos acompanhava. Logo, pensávamos que o público iria conosco onde quer que nós fôssemos. E Grindhouse provou que essa teoria estava errada . Ainda assim foi uma ótima experiência, mas teria sido melhor se não tivéssemos sido pegos tão de surpresa pelo desinteresse do público". 

Grindhouse foi o tributo de Tarantino e Rodriguez ao cinema B dos anos 70, consistindo numa sessão dupla de quase quatro horas. Rodriguez fez a fita de zumbis inspirada por George Romero e John Carpenter Planeta Terror, enquanto Tarantino na segunda metade exibia seu À Prova de Morte, um tributo à filmes de horror e perseguição automobilística dos anos 70 como Corrida Contra o Destino e suspenses como os de Brian De Palma, Dario Argento e também John Carpenter, visivelmente Halloween e Christine, o Carro Assassino.

Mas quis o destino que Grindhouse fosse um enorme fracasso nos Estados Unidos em sua estréia. E com as barbas de molho, Tarantino e Rodriguez trataram de separar seus filmes e os lançaram no resto do mundo como longas individuais. Uma pena, porque a experiência dos dois filmes vistos juntos é a coisa mais próxima de uma sessão maldita que Hollywood jamais ousou chegar perto em muito tempo. Mas sabendo da fraca recepção da audiência norte-americana, tratava-se de uma questão de sobrevivência dos filmes para uma platéia mundial. Sendo assim, À Prova de Morte, avaliado sozinho e tão somente por seus valores fílmicos adquire uma outra luz, muito mais interessante, dentro da obra do diretor.      

Utilizando um fiapo de história, no caso a obsessão e os procedimentos de um dublê maníaco (Stuntmen Mike, interpretado com garra pelo icônico Kurt Russell) que persegue e mata mulheres usando seu carro 'à prova de morte', Tarantino revisita toda uma tradição de filmes baratos e atores mais baratos ainda devolvendo ao gênero, criadores e intérpretes uma dignidade insuspeita, exatamente aos moldes do que fez em Cães de  Aluguel e Django Livre. Devolvendo a relevância ao western, ao filme de assalto e aqui ao thriller de horror, o criador exercita mais uma vez sua manobra favorita: reposiciona o cinema popular no berço da classe trabalhadora, eliminando quaisquer traços de elitismo ou pretensão no seu retrato sem preconceitos daquilo que o entretenimento pode ser.

Então fica claro que À Prova de Morte é o seu filme da sessão maldita de sábado à noite, para ser visto pelo espectador de preferência levemente bêbado e totalmente munido da tão famosa 'suspensão da descrença', pois tudo que é mostrado em tela não passa de um cineasta no completo comando de seu ofício e manipulando uma dezena de fetiches que compõem uma fita ousada em forma e temática. O diálogo das garotas que serão vítimas do maníaco nunca é menos que espetacular, justamente por ser tão próximo àquilo que com certeza Tarantino ouviu em milhares de conversas com jovens garotas. Elas falam com aquele ritmo, com aquela cadência, e é absolutamente crível e interessante ver essas mulheres conversando trivialidades, até o choque do momento em que o assassino entra em cena para subverter esse universo.

E a idéia da tranquilidade malemolente feminina atacada por um mundo machista e brutal se faz clara na metáfora que cruza o filme, a de um homem cru e perverso que frequentemente tenta penetrar em um universo estranho à ele na base da violência. E claro, repelido pela esperteza e traquejo de mulheres quase sempre muito mais inteligentes e sagazes que o próprio. A conclusão do filme e sua estrutura inusitada, em duas metades muito definidas, ajudam à corroborar a tese de que despretensiosamente Tarantino fez desse pequeno filme um comentário muito pertinente sobre os caminhos e descaminhos do machismo e feminismo, sem qualquer tipo de moralismo ou julgamento apressado. 

Tecnicamente a obra é um triunfo de enquadramentos deliciosamente imperfeitos, canções que comentam e melhoram cenas, e grandiosas sequências de ação que parecem sair em linha direta de um filme perdido dos anos 70. A perseguição que ocupa quase toda a segunda metade do filme é exemplar da liberdade de Tarantino em encenar com maestria algo que deve mais à Bullitt e Corrida Contra o Destino do que Velozes e Furiosos

À Prova de Morte é um dos grandes filmes de sessão maldita já feitos; se sua estética garante o prazer cinéfilo, sua aparente despretensão esconde um filme meticuloso. Numa apoteose de sangue e a sugestão iminente de sexo, carros velozes, carros destruídos e sonhos de sábado á noite não concretizados, Tarantino consegue dizer uma coisa ou duas sobre o estado dos relacionamentos humanos, sobre nosso desejo das coisas que nunca poderemos alcançar. Uma estrada percorrida com frequência, mas infinita. Um filme para revisão, sempre.      

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