Powered By Blogger

sábado, 9 de janeiro de 2016

OS OITO ODIADOS (THE HATEFUL EIGHT, EUA, 2015, 187 min. Dir. Quentin Tarantino)

Os Oito Odiados é mais uma fita de Quentin Tarantino destinada a ser discutida por cinéfilos do mundo todo durante muito tempo. Você pode odiar, amar, parar na metade, assistir várias vezes ou simplesmente desprezar. Certamente quem assistir até o final não será o mesmo. O filme faz você reagir, isso é um elogio.

Começa com um fiapo de trama muito bem contextualizada: o oficial de justiça John Ruth (Kurt Russell) vai levar a fugitiva Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) até Red Rock para enforcá-la e receber a recompensa. Passando pelo Wyoming no meio de uma forte nevasca, é obrigado a dar carona para o Major Marquis Warren (Samuel L.Jackson) e o novo xerife de Red Rock, o confederado Chris Mannix (Walton Goggins). Para fugir da nevasca, os quatro se refugiam numa estrebaria e restaurante à beira da estrada onde encontram mais quatro figuras peculiares: um veterano General de Guerra racista Sandy Smithers (Bruce Dern), um inglês nomeado o novo carrasco de Red Rock, Oswaldo Mobray (Tim Roth), o mexicano que cuida do local, Bob (Demian Bichir), e o pistoleiro Joe Gage (Michael Madsen). O contexto vem dessa gente toda carregar ressentimentos gravíssimos devido ao final da guerra da secessão, que dividiu os Estados Unidos. Prosseguindo com o tema já abordado em Django Livre, Tarantino faz desse encontro de párias numa cabana durante a tempestade de neve uma representação de cada nicho da América em sua construção. E as discórdias dessa mesma América surgem nas faíscas entre esses personagens, nenhum santo, vale a pena destacar. É o lugar onde o escravo vencedor vai à forra munido da outorga de Lincoln contra o branco racista; onde o colonizador inglês e o imigrante mexicano procuram seu espaço, onde a fugitiva e o homem da lei se digladiam, onde o xerife irascível e o caubói em busca de dinheiro fácil se encontram.

E nunca como em outro filme de Tarantino a violência fez tanto sentido. O rancor desse grupo de facínoras alcança uma apoteose de sangue muito simbólica. O inferno que estes personagens irão enfrentar é contraponto e ilustração perfeita do Jesus crucificado e coberto de neve na abertura do filme. Aqui não há espaço para trégua, misericórdia, perdão. Não há 'Noite Feliz' entoada no piano capaz de cessar décadas de escravagismo, violência e raiva contida. Ao ambientar essa hecatombe num ambiente claustrofóbico e de impossível escapada, o realizador nos faz pensar em sua estréia, o seminal Cães de Aluguel. A baixeza das relações e a sangueira desatada de fato fecha o ciclo com seu primeiro filme, mas também vêm à mente o retrato da miséria humana de O Tesouro de Sierra Madre, assim como a selvageria inusitada que irrompe em meio à nevasca vem em linha direta de O Enigma de Outro Mundo, aquele terror de John Carpenter onde em uma base no Alasca uma equipe de pesquisa era dizimada por um ser alienígena. A trilha de Ennio Morricone confirma essa tese, e coloca a paranóia e o sentimento de inadequação no cerne do filme. Mas a violência é o elo de união desses personagens, e o demônio que surge entre eles não é nada alienígena; vem mesmo é da mesquinharia humana. Assim como no já clássico Seven de David Fincher, a sugestão de Tarantino é que o humano destinado a rejeitar um acordo de paz está destinado a implodir, refém do mal que carrega dentro de si; a condenação final suprema da vida.

Falar sobre o brilhantismo técnico é chover no molhado, mas vale destacar que ele aposta muito mais alto que em Django Livre numa direção de atores dificílima, pois não orienta em quem o espectador deve se apoiar como bússola moral do filme. Ainda consegue de maneira soberba controlar a tensão num espaço fechado utilizando enquadramentos de câmera precisos e o poder de um texto afiado e potente para segurar o público. Consegue. É mais ambicioso e difícil que suas fitas anteriores, pois aqui, ao contrário da maioria de suas obras, existe um subtexto denso e pretensioso percorrendo todo o texto. É tudo muito carregado de significado histórico, e não há maior sinalizador disso do que a tal carta escrita por Lincoln em posse do Major Marquis. É como se existisse pairando sobre essa dança da morte macabra pelos detestáveis do título uma espécie de espírito da América, sugerindo de maneira invisível aquilo que pode ou não ser feito, o que é ou não ofensa à fundação do país. Ao final, sem dar spoilers, o que fica com o espectador é uma jornada ao coração negro e enlameado de uma nação que nunca acertou suas contas mais extremas, suas pendências mais absurdas. E se no cerne desses desacordos é onde nasce a violência, é lá que o autor está, nos presenteando com mais um épico sobre a natureza humana em suas mais sombrias vertentes, na encruzilhada do sadismo e o prazer culpado.

Sergio Leone, Sam Peckinpah, John Ford, Howard Hawks, John Carpenter, Sergio Corbucci e tantos outros foram os cineastas cujos nomes me vieram à mente durante a exibição de Os Oito Odiosos. Em quase três horas de filme Tarantino honra o legado de cada um deles e afirma o seu próprio. Seu relato de uma América em impasse é legítimo e me deixou emudecido ao final. Me perguntei sobre a validade de um filme desse quilate nos dias de hoje, se vai ter gente pensando e discutindo com paixão tudo o que foi mostrado pelo autor. Gosto de pensar que sim. Mas é uma jornada tortuosa; muitos podem ficar pelo caminho.  

2 comentários:

  1. Perfeito, meu caro! Texto sensacional...

    ResponderExcluir
  2. Valeu Mateus! Você já tinha me falado no ano novo o filmaço que é, agora é rever e rever...Abraço!

    ResponderExcluir