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sábado, 26 de dezembro de 2015

RETROSPECTIVA TARANTINO: KILL BILL VOL.2 (EUA, 2004, 137min. Dir. Quentin Tarantino)

Direto e reto: Kill Bill Vol.2  é provavelmente o filme usado por Quentin Tarantino para exorcizar um romance em que ele magoou muito a garota, e depois ela o procurou e partiu seu coração em pedaços.

Não há outra forma de descrever essa sequência direta da primeira parte em que o diretor muda completamente o tom do filme e o transforma numa mistura de road movie com western spaghetti e um gigantesco filme de arte amalucado sobre discussão de relacionamento. No meio disso, lutadoras caolhas, uma mulher enterrada viva, a teoria definitiva sobre a validade do Superman, um matador perigosíssimo contratado para desentupir privadas e um dono de bordel perguntando se existe um orifício anal em seu cotovelo. Decididamente, um filme de Tarantino.

Sim, esse é o filme em que Uma Thurman é enterrada viva, o filme em que a mesma luta com Daryl Hannah e parece uma cena do Jackass; mas para mim sempre vai ser o filme da melancolia de Tarantino, porque cá entre nós, um cara que filma uma cena daquela em que vemos um puteiro vazio as cinco e meia da manhã, o cara tem que ser muito cruel pra fazer aquilo, porque de certa forma ele sabe o que significa, ele sabe da badtrip que é, e ele curte isso, ele curte ambientar suas histórias em um universo desse tipo. 

E essa melancolia perpassa todo o filme, pela razão mais óbvia possível: é um filme de reencontro, de separação, um filme daquilo que poderia ter sido e não foi. Juro pra você que está lendo, o cara que muda totalmente de um filme insano de kung-fu para isso, ele merece um prêmio, uma placa. Porque reencontrar a pessoa que te quis tão bem e tão mal ao mesmo tempo não é tarefa fácil, e o cineasta sabe disso. Ele desacelera o passo e dá vazão às emoções reprimidas de Bill e Beatrix Kiddo, a Noiva.

Tarantino recheia o filme com mais uma centena de baboseiras incríveis e impressionantes, mas o que importa mesmo é a hora final em que a garota e seu ex batem um papo daqueles que vão entrar para a história do cinema, ou ao menos para a história do MEU cinema, e isso já basta. No fim das contas, essa história mortal de dois assassinos perigosíssimos escondia apenas um casal que se amava e se perdeu. Ambos eram ciumentos e por um descaminho desses da vida impossível de controlar, cada um queria uma coisa diferente do outro.E não houve meio de fazer duas visões coexistirem num relacionamento. 

E daí ele agrediu ela porque ele a amava muito (e claro é um psicopata amoral, como todos são em Tarantino) , e ela ficou à beira da morte. E num lapso de vida digno dos filmes, ela volta dos semi-mortos e o reencontra. E mesmo que ela o ame, há um preço a ser cobrado por todo esse desgaste, essa desilusão. E seria inútil Bill pensar que sairia ileso. Não há mal algum infligido à pessoa amada que passe impune, e ele sabe disso. Quando a noiva chega até ele e o encontra junto com a filha, o fruto do amor do casal, ele já sabe de antemão que não há escapatória.

Essa inevitabilidade do coração partido guia esse meio-filme fascinante de Tarantino, uma dança das cadeiras marcada, em que cada parte sabe seu papel e o cumpre até o final, triunfante e algo triste. Se Kill Bill Vol.2  desapontou muitas pessoas por não ser uma sequência direta em tom e estilo da primeira parte, ele confirma o cineasta como um rebelde totalmente consciente de sua posição marginal em Hollywood ou mesmo no mundo. Este é um filme romântico e decididamente honesto em seu retrato do amor perdido, e aquela cena em que ela parte o coração dele em pedaços, aquilo é a coisa mais amadora e sincera, mais pura e honesta em muitos anos de cinema. Nenhum cineasta teria a coragem de ser tão aberto e vulnerável,e Tarantino fez isso. Eu percebo que Kill Bill Vol.2  não é um filme que recebeu o reconhecimento que deveria, pois seu retrato do relacionamento amoroso é tão honesto quanto um Woody Allen, e não é porque ele envolve assassinos e morticínios que ele deveria ser ignorado pela crítica dita 'séria'. É uma obra original como poucas, e retrata as idiossincrasias de um casal de assassinos que se amavam e se separaram nas piores circunstâncias possíveis. Se não viu, corra e faça isso agora, Se já viu, assista novamente e pense nisso.  

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

RETROSPECTIVA TARANTINO: KILL BILL VOL.1 (EUA, 2003, 111min., Dir. Quentin Tarantino)

Entre 1998 e 2003 Quentin Tarantino passaria quase seis anos sem filmar, praticamente anônimo, enquanto toda a paisagem cinematográfica era remodelada por uma nova geração de diretores visionários. Numa tacada só Matrix, dirigido pelos Irmãos Wachowski, redefiniu a imagética do cinema de ação, assim como a confirmação dos talentos de Paul Thomas Anderson, Sam Mendes, Spike Jonze, David Fincher, Darren Aronofsky, Alejandro González Iñárritu e Wes Anderson em longas criativos e ousados marcaram o cinema popular na virada dos anos 2000.

É fácil imaginar Kill Bill como um projeto de introdução das maluquices e obsessões de Tarantino para uma nova geração que surgia. Após a recepção algo fria de Jackie Brown no final dos anos 90, o autor adentraria os 2000, uma década que valorizava o 'eu' como alegoria central do seu zeitgeist. Logo decidiu de uma vez por todas afirmar sua estrela de criador solitário num universo particular com uma saga de vingança, o ato supremo do ego, numa embalagem mais egocênctrica ainda que viria por revelar suas maiores qualidades e fraquezas. O filme foi anunciado como uma saga épica de artes marciais que teria mais de três horas e portanto, seguindo uma moda bastante em voga na época, seria dividida em duas partes. Assim como no mesmo ano Matrix Reloaded seria seguido por Matrix Revolutions, Kill Bill Vol.1 foi lançado em outubro de 2003 nos Estados Unidos e sua segunda parte, Kill Bill Vol.2, foi lançado em abril de 2004.

O lançamento oficial da primeira parte de Kill Bill no Brasil aconteceria apenas em 23 de Abril de 2004, depois do lançamento da segunda parte no exterior. À essa altura, a internet já caminhava a passos largos e via sites como o Rotten Tomatoes e muitos outros especializados em cinema confirmando o sucesso de público e crítica do filme. Uma cópia do dvd estadunidense já circulava os sites de compartilhamento e um amigo que não vou citar o nome por razões puramente comerciais assistiu, e passou para mim em VHS o filme em toda sua glória, legendado por grupos de aficionados que desde então só fizeram aumentar e hoje comandam esse serviço de maneira muito mais competente que as próprias distribuidoras. Eu trabalhava em uma videolocadora e lembro claramente do dia em que a fita caiu em minhas mãos. Assisti o filme umas dez vezes em uma semana facilmente. Logo tratei de mostrar para todos os meus amigos, e até o dono da locadora onde eu trabalhava quis saber do que falávamos tanto. Em menos de um mês aquela fita já tinha rodado tanto e tanto que parecia desgastada. Mas até o lançamento nacional em cinemas, eu voltei á ela ainda algumas vezes. E depois vi mais vezes no cinema. E mais vezes em dvd. E em blu-ray. E segue assim até hoje, quando ainda neste ano o filme foi exibido em mostra especial numa sessão de filmes alternativos aqui na cidade onde moro. O ciclo se fechou.

Todo esse papo para dizer que Kill Bill é um filme estupendo, um pequeno milagre do cinema onde um artista pega uma linha de argumento (no caso, 'divórcio entre casal de assassinos vai mal e mulher busca vingança contra seu mandante') e o transforma em uma ode aos filmes de kung-fu, westerns spaghettis, filmes de arte, filmes de horror, Brian De Palma, Bruce Lee, François Truffaut, Animes, Sonny Chiba, Godzilla, Robert Rodriguez, Gordon Liu e a velha guarda do cinema de Hong Kong, Rockabilly oriental, thrillers suecos, histórias em quadrinhos, filmes noir, a banda esquecida dos anos 60 The Human Beinz e juro, a lista é tão grande que eu passaria parágrafos descrevendo tudo que é referenciado em tela e ainda assim eu perderia alguma coisa. Os dois pólos de tensão do filme, 'A Noiva', personagem defendida com garra por Uma Thurman, e Bill, o chefe de uma gangue de assassinos encarnado na atuação derradeira do saudoso David Carradine, carregam o filme de maneira elegante e precisa. Thurman realiza o verdadeiro tour de force  dessa primeira parte, suando, sangrado e entregando diálogos incríveis aqui e ali. Carradine está presente no filme como o objeto de vingança da personagem, mas fisicamente ausente. Tarantino sabiamente inverteu a ordem lógica desse tipo de filme e entregou toda a catarse nesse capítulo inicial, para depois aprofundar as razões e motivações dos personagens. É uma tacada de mestre jamais foi copiada até hoje.

E se você assistiu Kill Bill Vol.1, sabe que a segunda metade do filme, mais ou menos depois que A Noiva parte para o Japão encontrar uma de suas algozes, a mafiosa O-Ren Ishii, vira praticamente um filme musical. São mais de quarenta minutos onde Tarantino coloca toda sua habilidade de cineasta no topo, uma antologia de cenas de ação tão bem filmadas que até hoje não encontra similares nem mesmo no cinema asiático. O ritmo é perfeito, a trilha sonora é espetacularmente bem escolhida e o filme termina num gancho incontornável, já prenunciando uma segunda parte com clima completamente diferente.

Daqui em diante o diretor colocaria suas paixões em primeiro lugar e isso resultou num cinema muito mais ligado às suas raízes de apreciador dos filmes B que devorou em sessões duplas e nos seus dias de rato de locadora. Mas isso é superfície. Todo o sangue e estilização que jorram de Kill Bill Vol.1  são novamente a embalagem que Tarantino utilizou para narrar seu pequeno filme sobre divórcio, um divórcio que acontece dentro de seu mundo de cinema; colorido, sangrento, impiedoso. Construído sob bravatas e discursos épicos de ética e vingança, nunca decepcionando o cinéfilo que ousar abandonar suas idéias pré-concebidas sobre cinema no início da exibição. Kill Bill  foi a encruzilhada onde Quentin Tarantino colidiu cinema popular e erudito, confundiu críticos e seduziu um novo público. E principalmente reinventou sua carreira, deixando de ser apenas um sabor dos anos 90 para se afirmar como um dos cineastas mais influentes de sua geração.   
        

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

RETROSPECTIVA TARANTINO: JACKIE BROWN (EUA, 1997, 154min. Dir. Quentin Tarantino)

Mais de dois anos após o sucesso sem precedentes de Pulp Fiction, a expectativa de todo cinéfilo no mundo pairava sob a seguinte questão: Teria Quentin Tarantino mais algum coelho na cartola após sua estréia com um dos pares de filmes mais contundentes de todos os tempos?

A resposta é Jackie Brown, um filme dirigido com mão de veterano, de ritmo próprio nada dependente dos seus filmes anteriores. O diretor sabiamente optou por adaptar o romance Ponche de Rum, de Elmore Leonard. Se você conhece alguma de suas obras, sabe que o estilo literário de Leonard se encaixa como uma luva e funciona até como influência sobre o estilo detalhado, verborrágico e imprevisível de Tarantino.

Jackie Brown (vivida pela musa da blaxploitation Pam Grier) é uma aeromoça que trabalha para uma empresa aérea de quinta categoria em Los Angeles. Incrementa seu faturamento lavando dinheiro de drogas do traficante Ordell Robbie (Samuel L.Jackson em grande momento). Em uma dessas operações, é flagrada e indiciada pelos oficiais Ray Nicolet (Michael Keaton) e Mark Dargus (Michael Bowen), que a obrigam a colaborar com o FBI em troca da diminuição de sua pena. Jackie vai usar de sua destreza e conhecimento das ruas para enganar Ordell, os agentes do FBI e ainda angariar algum dinheiro de todo esse imbróglio. Vai contar com a ajuda de seu agente da condicional, Max Cherry (O excelente Robert Forster, de O Pecado de Todos Nós com Marlon Brando). Ainda completam o elenco Robert DeNiro como o ladrão de bancos recém-saído da prisão e parceiro de Ordell, Louis Gara, e Bridget Fonda como Melanie Halston, uma garota de praia que passa os dias fumando maconha num bong e sendo uma das concubinas de Ordell.

O grande barato de Jackie Brown são as pequenas observações inseridas por Tarantino aqui e ali sobre a vida cotidiana. É seu único filme que não se passa numa espécie de 'Tarantinoverso', e isso confere uma naturalidade inusitada tanto na abordagem das locações, todas no sul de Los Angeles em locais frequentados por Tarantino, quanto no modo como os personagens interagem. É quase como se a trama policial ficasse em segundo plano e por alguns momentos nós tivéssemos um passe livre para entrar na vida dessas pessoas, de maneira relaxada e realista. Tudo é absolutamente crível, e nunca mais Tarantino se interessou por um retrato tão naturalista da vida em seus filmes. Creio que esse filme encerra uma 'Trilogia de Los Angeles', iniciada com Cães de Aluguel e seguida por Pulp Fiction ligando sua cinematografia aos grandes filmes de crime passados na cidade, notadamente os de Michael Mann e recentemente, Nicolas Winding Refn em Drive.    

No relacionamento entre Jackie Brown e Max Cherry fica claro o aceno do autor para temas como a maturidade em relacionamentos e a paixão que queima lenta, em fogo brando, mas nunca insincera. Os dois estabelecem um elo importante durante o filme e revelam um lado do cineasta mais romântico, sem nunca resvalar na desimportância das comédias românticas ou dramalhões de Hollywood. Este relacionamento descrito por Tarantino não tem muito lugar no cinema e nem no mundo, e por isso ressoa muito forte no filme. Não é uma trama de super heróis, ou mesmo de mocinhos e bandidos. Mesmo conseguindo incutir no filme várias de suas paixões, dos filmes blaxploitation dos anos 70 até a trilha sonora bem escolhida, o que fica na fita é um Tarantino completamente vulnerável e amadurecido, disposto a encarar seu ofício como cineasta de maneira consistente e com talento suficiente para deixar de ser apenas o diretor sensação de uma temporada. 

É curioso notar como o público na época deu as costas ao filme e o transformou no maior fracasso comercial da carreira de Tarantino até hoje. Injustiça das grandes, fica claro que o autor se empenhou em entregar algo maior do que seu público pretendia ou mesmo poderia desejar. Não importa. Em consequentes revisões, hoje Jackie Brown desfruta de status privilegiado na carreira do cineasta e provou que o tempo é juiz de muitas obras cinematográficas. Um filme de confirmação da carreira de Tarantino, que entraria em um hiato de quase seis anos até entregar seu mais ambicioso projeto: Kill Bill.    


sábado, 19 de dezembro de 2015

RETROSPECTIVA TARANTINO: PULP FICTION (EUA, 1994, 155min. Dir.Quentin Tarantino)

Eu sei, você que me conhece ou é leitor desse blog já cansou de ouvir falar no Pulp Fiction, certo? Certo. Quando eu tinha vinte anos, arrumei um emprego numa videolocadora aqui pertinho da minha casa e por algum tempo meu sonho era seguir a trajetória de Tarantino. O conto de fadas do balconista de locadora que viu todos os filmes e depois se tornou o cineasta mais influente dos anos 90 nunca saiu da minha cabeça, influenciou a mim e mais um monte de moleques que queriam ser, de uma vez por todas, Quentin Tarantino. O sonho continua forte e vivo, subindo colinas e descendo vales, mas como eu já falei de maneira detalhada sobre este que é o filme mais importante do cineasta, vamos tentar uma coisa diferente.

Pulp Fiction é o filme da dança, aquele em que John Travolta parou de falar com bebês e finalmente renasceu. É o que revelou Uma Thurman, Samuel L.Jackson, Ving Rhames numa tacada só e de quebra deu novo rumo à carreira de Bruce Willis. É o filme da overdose, o filme do estupro anal, o filme maluco com o roteiro fora de ordem, aquele em que o mocinho morre na metade, em que a mocinha pontilha a tela para chamar o cara de quadrado. Acima de tudo, é o filme que confirmou Quentin Jerome Tarantino como o cineasta americano mais importante saído dos Estados Unidos nos anos 90, permanecendo até hoje no topo, fazendo tudo como quer, ao seu tempo, com suas regras. E isso quem estiver lendo me desculpe se discorda, mas é rock'n'roll paca.

É rock'n'roll porque Tarantino aprendeu a fazer cinema assistindo cinema, e passou a infância toda sendo levado pela mãe em infindáveis sessões duplas nos mais variados muquifos de Los Angeles até chegar à maioridade, quando arrumou um emprego de lanterninha em um cinema pornô e daí em diante nunca mais olhou para trás. Sua sensibilidade cinematográfica aprendeu a equilibrar filmes de kung-fu e Godard, Dario Argento e Spielberg, De Palma e Leone. Sua paixão por filme nunca diminuiu. Se toda essa biografia foi inventada, eu não ligo; é empolgante de qualquer jeito.

Do outro lado do Atlântico, exatamente em 1994, um bando de arruaceiros de Manchester também se preparavam para tomar a cena musical de assalto com uma proposta muito parecida com a do cineasta: um revisionismo sincero das grandes referências da história do rock'n'roll britânico com um molho de vivência própria, sem se curvar ao mercado e tentando escrever um livro novo de regras ao mesmo tempo em que se tornavam um novo marco zero da música independente, criando um exército de seguidores. O nome da banda é OASIS

O cabeça da banda foi Noel Thomas David Gallagher, e o Oasis, assim como arrebatou o público de maneira inegável por vários anos, terminou também de maneira explosiva numa briga entre Noel e seu irmão Liam, ambos membros remanescentes da formação original. Mas Noel Gallagher continua, e aplica aos seus discos como artista solo acompanhado de banda a mesma abordagem de sempre desde os tempos de Oasis: colagem pós moderna usando toda referência como recombinação consciente do passado. Dá certo.

Quentin Tarantino faz exatamente o mesmo em seu campo de atuação. Utiliza um arsenal de referências assimiladas de todos os filmes que assistiu para remixar esse apanhado de idéias e reinseri-las em um novo contexto, com completo domínio da escrita e da estrutura literária em seus roteiros. Mas isso é muito técnico, muito pouco verdadeiro com o que realmente significa toda essa parada que estou organizando aqui.

O que realmente preciso dizer e sempre reafirmar é que cultura pop é jogo de jovens, e seja em cinema, música, literatura, fotografia, quadrinhos ou outras formas de expressão artística, quem move esse mundo de verdade é gente de sangue quente e com gana de conquistar o mundo, incendiar pra valer a mente das pessoas. E esse intento quase sempre é visceral e não intelectual. Tarantino e Gallagher são grandes artistas de rua que ousaram e hoje são brands, marcas, viraram adjetivos, sem jamais perder a contundência em seus trabalhos. Conseguiram de fato influenciar toda uma geração e mudaram o panorama artístico no mundo todo, deixaram sua marca. Ao mesmo tempo chamaram a atenção para a importância da conservação do passado cultural, da busca pelas referências na construção de uma obra. Conseguiram fazer isso sem um pingo de inacessibilidade. Se o discurso dos dois em entrevistas é verborrágico e soa arrogante, é um claro jogo de cena buscando recuperar o brio combalido do artista vindo de baixo ante a máquina que cospe dia após dia embustes fabricados. 

A verdade destes dois artistas, unidos aqui em um capricho meu por terem abrido meu córtex à golpes incisivos de genialidade e inovação está na obra deles: discos e filmes populares que podem ser consumidos sem restrição, fervilhantes em idéias e conceitos e acessíveis, disponíveis a todas as gerações que tiverem algum interesse sobre o que aconteceu na arte popular dos anos 90 em diante. A verdade está em não esconder do público o jogo, em entregar a catarse e assumir que fazer sucesso é bom, gera dinheiro, alimenta mais os artistas independentes e renova a indústria, que feliz, observa e contrata mais artistas com voz própria.

Assim como Noel Gallagher e seus dois primeiros e incensados discos sob a égide do Oasis, Tarantino sempre será lembrado por Pulp Fiction. Porque é o filme que revolucionou tudo, de maneira despretensiosa, com um amadorismo cativante e ousadia que não encontrava par na época. Esse é o momento singular em que o artista ainda é muito jovem e inocente, e tem força suficiente para concretizar todos seus ímpetos sem que alguém o limite. Ele não pensa se existe um público, mas por outro lado, ele ainda é como seu público, ainda pensa e existe na mesma classe. Depois da explosão tudo isso muda, e sábio é quem sabe sobreviver no mapa sem desaparecer ou empalidecer. 

Mais uma vez traçando paralelo com o maior hit de Gallagher, "Wonderwall", Tarantino e seu Pulp Fiction é uma obra que fala sobre nada e sobre tudo; mantém seu poder de interesse em um conteúdo enigmático que nunca se revela completamente mas que provoca fascinação e paixão crescente a cada revisão. É a evocação de um sentimento ou de vários deles, um cartão postal do caleidoscópio de sentimentos que é a vida, variando subitamente de gênero á gênero conforme mudanças de humor. Mais que tudo, a confirmação do sentimento maior de que fazemos parte de algo em curso que ainda não acabou. E que pode ser a qualquer momento interrompido de maneira súbita e sem aviso. Antes que meu tempo acabe, concluí que Pulp Fiction é um filme que fala enfim, sobre a

 "Todas as histórias são continuações; influência é felicidade"  -Michael Chabon, escritor, em 2015.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

STAR WARS - O DESPERTAR DA FORÇA (EUA, 2015,122min., Dir. J.J.Abrams)

A grande ideia por trás de Star Wars e seu calcanhar de aquiles sempre foi justamente aquilo que faz qualquer fã babar e afasta muita gente contrária à série: é cinema mas é seriado, é episódico e tem ritmo de televisão, clima de matinê grandiosa com mocinhos, vilões e tudo que o escapismo embalado pelos melhores efeitos especiais pode proporcionar. 

George Lucas, o criador da coisa, é visionário, mas tem mão pesada, e a segunda trilogia iniciada em 1999 e finalizada há dez anos em 2005 provou que se o homem é um midas dos efeitos digitais, de alguma forma utilizar-se de três filmes para contar a história de Darth Vader, o vilão, foi uma decisão equivocada que se ao menos rendeu bons momentos principalmente ao final do terceiro filme, também terminou por anular a luz da série, o ponto de vista do herói e a imprevisibilidade das reviravoltas.

E é aí que "Star Wars - O Despertar da Força" acerta no alvo e empolga. Entra J.J. Abrams, o criador de dois dos seriados mais famosos dos últimos tempos: "Alias" e "Lost", ambos conhecidos por seus enredos mirabolantes. Em seguida emplacou uma carreira cinematográfica exemplar onde adaptou com êxito não uma, mas duas franquias baseadas em séries de TV dos anos 60: seu "Missão: Impossível 3" e  os"Star Trek 1 e 2" são exemplos de revitalização e adaptação para a tela grande de todos os maneirismos e esquemas utilizados em seriados de TV. Abrams sabe utilizar o poder da estrutura em um roteiro, sabe entregar personagens interessantes, frases de efeito, boas reviravoltas. Acima de tudo respeita as regras dessas séries e entende o apelo que cada uma tem de mais singular. Entrega isso ao fã ou ao espectador de ocasião sem cerimônia. Tem experiência na direção de atores e filma cenas de ação com efeitos especiais habilmente, sem complicar.

E o acerto na escolha do diretor reflete um filme de aventura coeso e emocionante, despreocupado em reinventar a roda; consciente da herança deixada pela trilogia original e resgatando uma alegria de cinema mais crua, algo em falta nos blockbusters atuais. Abrams e seu colaborador no roteiro Lawrence Kasdan mantém a história muito simples: após o desfecho de "O Retorno de Jedi", Luke Skywalker desaparece. E enquanto as forças do Império e Rebeldes se reorganizam, uma batelada de novos personagens se unem aos clássicos e partem em busca do Mestre Jedi supremo. Um ponto de partida que poderia dar errado, não fossem os novos personagens tão carismáticos ( Rey, uma heroína fabulosa que confirma de 2015 em diante o feminismo ditando papéis empolgantes e decisivos no cinema de ação moderno; Finn, um Stormtrooper que se volta para o lado dos heróis, e Poe Dameron, exímio piloto da resistência. O vilão, Kylo Ren, também surge com conflitos interessantes) e os velhos conhecidos tão bem dirigidos e com papéis fundamentais na trama. Harrison Ford, notadamente espetacular em cena recuperando com garra os trejeitos do anti-herói Han Solo, surge como destaque entre veteranos como Carrie Fisher, Anthony Daniels, Peter Mayhew e...vocês sabem quem, não vou dizer.

Particularmente não me considero um fã doente da série, mas sempre acompanhei com razoável empolgação e prazer esse desejo de cinema e aventura à moda antiga da trilogia original, que evoca tanto filmes de samurai quanto westerns.  A segunda trilogia dirigida por Lucas me fez perder muito o interesse por esse universo, admito. Mas esse é o filme certo, na hora certa, que pode reacender o ânimo dos já iniciados como eu e com certeza vai atrair o interesse de um novo séquito de neófitos prontos para os próximos filmes. É certo que "O Despertar da Força" é o melhor filme da série em mais de trinta anos. Se os criadores souberem manter todos os elementos clássicos e atraírem novos cineastas para injetar novas idéias ao jogo, acho que uma nova era de ouro para a saga espacial criada por Lucas se aproxima. Dedos cruzados, porque o diretor do próximo episódio marcado para 2017 é Rian Johnson, cineasta novato criador da pequena obra-prima "Looper", baita fita de ficção científica. 

Todo mundo pode dormir sossegado agora. Meus caros, com prazer declaro que Star Wars abandona sua sina de comercial para venda de brinquedos e merchandising e recupera com louvor sua posição no centro de um cinema fantástico de qualidade, inventivo e bem-intencionado. Já não era sem tempo.        

*INTERMISSÃO: PORQUE STAR WARS IMPORTA?

*
*Uma breve interrupção na Retrospectiva Tarantino para esse texto e a resenha de "Star Wars - O Despertar da Força" 

Faltando algumas horas para a estréia de "Star Wars - O Despertar da Força", sétimo episódio da saga espacial concebida por George Lucas e agora levada adiante pelas mãos de J.J.Abrams e seus colaboradores, a ansiedade é grande para conferir um evento cinematográfico que promete recuperar a relevância do cinema comercial em tempos tão bicudos. A internet já pipoca reações positivas de críticos e fãs empolgados nos Estados Unidos, onde a obra já teve première concorridíssima, assim como Inglaterra. 

De qualquer forma, só abri esse post para tentar adicionar algumas idéias sobre a relevância e impacto de Star Wars para o cinema comercial como um todo desde o final dos anos 70 e também tentar desfazer alguns mal-entendidos. 

George Lucas criou em 1977 um filme diferente da ficção-científica embasada e complexa. Sua intenção era resgatar o espírito de aventura das matinês, como do cowboy Roy Rogers e do explorador espacial Flash Gordon. As histórias em quadrinhos desenhadas por Jack Kirby, influência confessa do cineasta, também entraram no caldeirão de referências, assim como a filosofia de Joseph Campbell em seu livro-ensaio "O Poder do Mito", uma anatomia da saga do herói que ecoou de maneira potente na imaginação de Lucas e refletiu a criação da dualidade bem/mal assim como a retidão moral de seus protagonistas.

O impacto comercial sem precedentes só veio confirmar a existência de uma nova demografia de público: o jovem/adolescente consumidor voraz de histórias em quadrinhos, fanático por tecnologia e seriados de TV, além de comida fast-food e rock'n'roll. Em sua gênese, George Lucas atraiu e moldou o conceito daquilo que hoje se convenciona chamar de 'nerd', ou 'geek'. E foi esse público que notadamente tornou Star Wars o fenômeno que segue inabalável até hoje. Alguns célebres fãs se tornaram atores que não escondem sua admiração (Simon Pegg), até mesmo cineastas (David Fincher considera "O Império Contra-Ataca" um dos filmes de sua vida e começou a carreira na Industrial Light and Magic como estagiário neste filme).

Mas falando de cinema propriamente dito, é um gosto adquirido. Existe sim bastante rejeição ao escapismo juvenil criado pelo cineasta. E da minha parte, acho compreensível também. O "Episódio IV- Uma Nova Esperança", dirigido por Lucas e "V -O Império Contra Ataca", de Irvin Kershner, tem momentos de grande cinema, possuem roteiros engenhosos e são quase faroestes espaciais cheios de clima e excelentes reviravoltas. Os outros episódios seguem a linha estabelecida sem grandes arroubos de genialidade, mas são queridos pelos fãs.

Gostando ou não, o ritual popular proposto por essa cinessérie de espírito leve e aventuresca é digno de menção para a história do cinema, pois sempre servirá como porta de entrada para muitos jovens e crianças que são levados à assistirem e terminam por adquirir interesse, ou mesmo fanáticos de ocasião que celebram o culto com suas fantasias, brinquedos e histórias em quadrinhos.

E é munido dessa ideia de diversão leve e a intenção de ser transportado por duas horas para um mundo bem diferente desse aqui é que me despeço, pego meu chapéu e volto daqui algumas horas para a resenha de "Star Wars - O Despertar da Força". Se resgatar ao menos um pouco do espírito de 77, será uma agradável surpresa.                       

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

RETROSPECTIVA TARANTINO: CÃES DE ALUGUEL (EUA, 1992, 99min., dir. Quentin Tarantino)

Não me perguntem como estas coisas acontecem, mas há duas horas atrás eu estava escarrapachado no sofá, quase dormindo. E de repente, fui acordado por um baita raio, seguido de vários trovões, daqueles que fazem os cristais tilintarem. 

Ato contínuo, recuperado e assegurando-se de que a Terceira Grande Guerra não havia chegado, ainda atônito, liguei a tv e decidi assistir Cães de Aluguel, a estréia ruidosa de Quentin Tarantino, o último enfant terrible do cinema que numa tacada só revigorou o interesse de várias gerações de cinéfilos e de quebra reintroduziu no cânone do cinema policial estadunidense uma verve ética e viril, verborrágica e sanguinolenta. E que assim seja.

Com a proximidade de seu novo filme, Os Oito Odiados, vale a pena revisar toda a obra e porque não, encontrar aqui e ali detalhes que passaram despercebidos em revisões anteriores. Ou que diabos, apenas pela diversão pura e espontânea de se conferir um grande cineasta desfrutando de um apogeu criativo que já contabiliza mais de vinte anos, sem nunca decair na qualidade de sua produção.

De Cães... já se falou de tudo; o 'filme da orelha cortada', 'violentíssimo', 'plagio de filme chinês'. Mas é preciso má vontade aos borbotões para não perceber a inventividade da montagem, que evoca sabiamente Kubrick e seu O Grande Golpe. Não é uma ideia exatamente original contar a história de um assalto que dá espetacularmente errado pela ótica dos assaltantes após o fracasso da empreitada (o chinês City of Fire de fato também bebe da fonte e reprocessa através da estética da ação de Hong Kong), mas vale a pena lembrar que o marasmo reinante no cinema americano comercial em 1992 era algo que fazia Tarantino surgir parecendo Welles. Seu filme, desde a produção dos mavericks Monte Hellman (do seminal Two-Lane Bricktop, um clássico dos Drive-Ins) e Harvey Keitel (ator de Scorsese e Ferrara ressurgindo em atuação definitiva) passando pela escalação do escritor veterano e ex-presidiário Eddie Bunker e chegando à descoberta dos revisionistas em estilo de atuação Michael Madsen e o inglês Tim Roth, transborda um senso de comprometimento e desligamento do mainstream reinante na época que já o colocava em contraste com toda a linha de produção das fitas policiais aguadas produzidas na década de 90.

Mais do que isso, é um filme sobre o ato de mentir, de atuar, de dissimular. Sobre o ofício de ser ator, de convencer um grupo, de exercer carisma e se perder dentro desse motif.  Ao disfarçar o peso das traições e das múltiplas reviravoltas sob uma camada de cultura pop, diálogos afiados e violência que não pede desculpas, Tarantino revela aos poucos o tema da lealdade como força motriz de seu roteiro. Mas não o faz jamais de maneira piegas. É tudo frio e distante, como convém aos filmes noir influenciados pelo expressionismo alemão que diziam tudo através de imagens, atos e contrastes rascantes de preto-e-branco. Aqui, a imagética dessas duas cores é invadida por uma profusão de vermelho-sangue, um carnaval de vitalidade que jorra das entranhas de um Tim Roth alvejado, pedindo piedade por quase toda a projeção, mas finalmente detentor do segredo revelador; da alegria da destruição, do prazer quase infantil da conspiração de ser um infiltrado e convencer uma platéia (primeiro seu comandante na polícia), duas plateias (os policiais no banheiro que desconfiam dele), três plateias (os bandidos para os quais conta o imbróglio com os policiais no banheiro) e por fim a quarta platéia (nós, espectadores), que após testemunhar o ato mais bárbaro do filme, a já famosa  'tortura da orelha', quase sem suportar mais o apresentado, recebe no colo a revelação que muda todo o rumo do filme e o joga sob nova perspectiva. 

Se todos os atores fazem o possível para emular Lee Marvin, Eli Wallach, Clint Eastwood, Warren Oates e outros brucutus célebres do gênero de ação das décadas anteriores, não é acidente. Tarantino evoca na direção de atores toda a história do cinema-macho americano para fazer lembrar, com efeito,  uma época em que as ameaças não eram fugazes e as frases de efeito não eram meros ganchos cômicos. Quando quebra essa regra no diálogo do restaurante versando sobre Madonna e gorjetas e depois com Madsen, o proto-psicopata supremo, dizendo a frase "Ei cachorrinho, vai latir a noite toda ou vai morder?", é a piscadela de olho do diretor para os anos 90, para a modernidade. Modo de dizer que por baixo daquele simulacro todo de macheza e retidão entre bandidos já estivesse plantada ali a semente para uma década amoral, de desilusão e um vazio pop que ecoa até hoje. 

De resto, encarar um filme desse nível é como ouvir pela milésima vez um disco de sua banda favorita. Sabe-se exatamente tudo o que vai acontecer, mas a cada virada de estrofe, a cada refrão, a cada solo de guitarra é como se você subitamente reacendesse a paixão pela coisa e relembrasse o porquê daquele artista ter lhe cativado em primeiro lugar. Em segundo, a confirmação patente: não é todo dia que um cineasta tão faminto pelo ofício, tão vital e descomprometido com qualquer regra comercial a não ser as suas próprias surge na cena, a toma de assalto e súbito, inventa ou reinventa um estilo, não aceita ordens de ninguém e seco, dá o seu recado com toda a atitude do mundo. E agora eu sei exatamente porque eu vi esse filme, logo após ser acordado por um puta raio! Eternamente agradecido, Tarantino.