Powered By Blogger

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

RETROSPECTIVA TARANTINO: KILL BILL VOL.1 (EUA, 2003, 111min., Dir. Quentin Tarantino)

Entre 1998 e 2003 Quentin Tarantino passaria quase seis anos sem filmar, praticamente anônimo, enquanto toda a paisagem cinematográfica era remodelada por uma nova geração de diretores visionários. Numa tacada só Matrix, dirigido pelos Irmãos Wachowski, redefiniu a imagética do cinema de ação, assim como a confirmação dos talentos de Paul Thomas Anderson, Sam Mendes, Spike Jonze, David Fincher, Darren Aronofsky, Alejandro González Iñárritu e Wes Anderson em longas criativos e ousados marcaram o cinema popular na virada dos anos 2000.

É fácil imaginar Kill Bill como um projeto de introdução das maluquices e obsessões de Tarantino para uma nova geração que surgia. Após a recepção algo fria de Jackie Brown no final dos anos 90, o autor adentraria os 2000, uma década que valorizava o 'eu' como alegoria central do seu zeitgeist. Logo decidiu de uma vez por todas afirmar sua estrela de criador solitário num universo particular com uma saga de vingança, o ato supremo do ego, numa embalagem mais egocênctrica ainda que viria por revelar suas maiores qualidades e fraquezas. O filme foi anunciado como uma saga épica de artes marciais que teria mais de três horas e portanto, seguindo uma moda bastante em voga na época, seria dividida em duas partes. Assim como no mesmo ano Matrix Reloaded seria seguido por Matrix Revolutions, Kill Bill Vol.1 foi lançado em outubro de 2003 nos Estados Unidos e sua segunda parte, Kill Bill Vol.2, foi lançado em abril de 2004.

O lançamento oficial da primeira parte de Kill Bill no Brasil aconteceria apenas em 23 de Abril de 2004, depois do lançamento da segunda parte no exterior. À essa altura, a internet já caminhava a passos largos e via sites como o Rotten Tomatoes e muitos outros especializados em cinema confirmando o sucesso de público e crítica do filme. Uma cópia do dvd estadunidense já circulava os sites de compartilhamento e um amigo que não vou citar o nome por razões puramente comerciais assistiu, e passou para mim em VHS o filme em toda sua glória, legendado por grupos de aficionados que desde então só fizeram aumentar e hoje comandam esse serviço de maneira muito mais competente que as próprias distribuidoras. Eu trabalhava em uma videolocadora e lembro claramente do dia em que a fita caiu em minhas mãos. Assisti o filme umas dez vezes em uma semana facilmente. Logo tratei de mostrar para todos os meus amigos, e até o dono da locadora onde eu trabalhava quis saber do que falávamos tanto. Em menos de um mês aquela fita já tinha rodado tanto e tanto que parecia desgastada. Mas até o lançamento nacional em cinemas, eu voltei á ela ainda algumas vezes. E depois vi mais vezes no cinema. E mais vezes em dvd. E em blu-ray. E segue assim até hoje, quando ainda neste ano o filme foi exibido em mostra especial numa sessão de filmes alternativos aqui na cidade onde moro. O ciclo se fechou.

Todo esse papo para dizer que Kill Bill é um filme estupendo, um pequeno milagre do cinema onde um artista pega uma linha de argumento (no caso, 'divórcio entre casal de assassinos vai mal e mulher busca vingança contra seu mandante') e o transforma em uma ode aos filmes de kung-fu, westerns spaghettis, filmes de arte, filmes de horror, Brian De Palma, Bruce Lee, François Truffaut, Animes, Sonny Chiba, Godzilla, Robert Rodriguez, Gordon Liu e a velha guarda do cinema de Hong Kong, Rockabilly oriental, thrillers suecos, histórias em quadrinhos, filmes noir, a banda esquecida dos anos 60 The Human Beinz e juro, a lista é tão grande que eu passaria parágrafos descrevendo tudo que é referenciado em tela e ainda assim eu perderia alguma coisa. Os dois pólos de tensão do filme, 'A Noiva', personagem defendida com garra por Uma Thurman, e Bill, o chefe de uma gangue de assassinos encarnado na atuação derradeira do saudoso David Carradine, carregam o filme de maneira elegante e precisa. Thurman realiza o verdadeiro tour de force  dessa primeira parte, suando, sangrado e entregando diálogos incríveis aqui e ali. Carradine está presente no filme como o objeto de vingança da personagem, mas fisicamente ausente. Tarantino sabiamente inverteu a ordem lógica desse tipo de filme e entregou toda a catarse nesse capítulo inicial, para depois aprofundar as razões e motivações dos personagens. É uma tacada de mestre jamais foi copiada até hoje.

E se você assistiu Kill Bill Vol.1, sabe que a segunda metade do filme, mais ou menos depois que A Noiva parte para o Japão encontrar uma de suas algozes, a mafiosa O-Ren Ishii, vira praticamente um filme musical. São mais de quarenta minutos onde Tarantino coloca toda sua habilidade de cineasta no topo, uma antologia de cenas de ação tão bem filmadas que até hoje não encontra similares nem mesmo no cinema asiático. O ritmo é perfeito, a trilha sonora é espetacularmente bem escolhida e o filme termina num gancho incontornável, já prenunciando uma segunda parte com clima completamente diferente.

Daqui em diante o diretor colocaria suas paixões em primeiro lugar e isso resultou num cinema muito mais ligado às suas raízes de apreciador dos filmes B que devorou em sessões duplas e nos seus dias de rato de locadora. Mas isso é superfície. Todo o sangue e estilização que jorram de Kill Bill Vol.1  são novamente a embalagem que Tarantino utilizou para narrar seu pequeno filme sobre divórcio, um divórcio que acontece dentro de seu mundo de cinema; colorido, sangrento, impiedoso. Construído sob bravatas e discursos épicos de ética e vingança, nunca decepcionando o cinéfilo que ousar abandonar suas idéias pré-concebidas sobre cinema no início da exibição. Kill Bill  foi a encruzilhada onde Quentin Tarantino colidiu cinema popular e erudito, confundiu críticos e seduziu um novo público. E principalmente reinventou sua carreira, deixando de ser apenas um sabor dos anos 90 para se afirmar como um dos cineastas mais influentes de sua geração.   
        

Nenhum comentário:

Postar um comentário