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sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

RETROSPECTIVA TARANTINO: CÃES DE ALUGUEL (EUA, 1992, 99min., dir. Quentin Tarantino)

Não me perguntem como estas coisas acontecem, mas há duas horas atrás eu estava escarrapachado no sofá, quase dormindo. E de repente, fui acordado por um baita raio, seguido de vários trovões, daqueles que fazem os cristais tilintarem. 

Ato contínuo, recuperado e assegurando-se de que a Terceira Grande Guerra não havia chegado, ainda atônito, liguei a tv e decidi assistir Cães de Aluguel, a estréia ruidosa de Quentin Tarantino, o último enfant terrible do cinema que numa tacada só revigorou o interesse de várias gerações de cinéfilos e de quebra reintroduziu no cânone do cinema policial estadunidense uma verve ética e viril, verborrágica e sanguinolenta. E que assim seja.

Com a proximidade de seu novo filme, Os Oito Odiados, vale a pena revisar toda a obra e porque não, encontrar aqui e ali detalhes que passaram despercebidos em revisões anteriores. Ou que diabos, apenas pela diversão pura e espontânea de se conferir um grande cineasta desfrutando de um apogeu criativo que já contabiliza mais de vinte anos, sem nunca decair na qualidade de sua produção.

De Cães... já se falou de tudo; o 'filme da orelha cortada', 'violentíssimo', 'plagio de filme chinês'. Mas é preciso má vontade aos borbotões para não perceber a inventividade da montagem, que evoca sabiamente Kubrick e seu O Grande Golpe. Não é uma ideia exatamente original contar a história de um assalto que dá espetacularmente errado pela ótica dos assaltantes após o fracasso da empreitada (o chinês City of Fire de fato também bebe da fonte e reprocessa através da estética da ação de Hong Kong), mas vale a pena lembrar que o marasmo reinante no cinema americano comercial em 1992 era algo que fazia Tarantino surgir parecendo Welles. Seu filme, desde a produção dos mavericks Monte Hellman (do seminal Two-Lane Bricktop, um clássico dos Drive-Ins) e Harvey Keitel (ator de Scorsese e Ferrara ressurgindo em atuação definitiva) passando pela escalação do escritor veterano e ex-presidiário Eddie Bunker e chegando à descoberta dos revisionistas em estilo de atuação Michael Madsen e o inglês Tim Roth, transborda um senso de comprometimento e desligamento do mainstream reinante na época que já o colocava em contraste com toda a linha de produção das fitas policiais aguadas produzidas na década de 90.

Mais do que isso, é um filme sobre o ato de mentir, de atuar, de dissimular. Sobre o ofício de ser ator, de convencer um grupo, de exercer carisma e se perder dentro desse motif.  Ao disfarçar o peso das traições e das múltiplas reviravoltas sob uma camada de cultura pop, diálogos afiados e violência que não pede desculpas, Tarantino revela aos poucos o tema da lealdade como força motriz de seu roteiro. Mas não o faz jamais de maneira piegas. É tudo frio e distante, como convém aos filmes noir influenciados pelo expressionismo alemão que diziam tudo através de imagens, atos e contrastes rascantes de preto-e-branco. Aqui, a imagética dessas duas cores é invadida por uma profusão de vermelho-sangue, um carnaval de vitalidade que jorra das entranhas de um Tim Roth alvejado, pedindo piedade por quase toda a projeção, mas finalmente detentor do segredo revelador; da alegria da destruição, do prazer quase infantil da conspiração de ser um infiltrado e convencer uma platéia (primeiro seu comandante na polícia), duas plateias (os policiais no banheiro que desconfiam dele), três plateias (os bandidos para os quais conta o imbróglio com os policiais no banheiro) e por fim a quarta platéia (nós, espectadores), que após testemunhar o ato mais bárbaro do filme, a já famosa  'tortura da orelha', quase sem suportar mais o apresentado, recebe no colo a revelação que muda todo o rumo do filme e o joga sob nova perspectiva. 

Se todos os atores fazem o possível para emular Lee Marvin, Eli Wallach, Clint Eastwood, Warren Oates e outros brucutus célebres do gênero de ação das décadas anteriores, não é acidente. Tarantino evoca na direção de atores toda a história do cinema-macho americano para fazer lembrar, com efeito,  uma época em que as ameaças não eram fugazes e as frases de efeito não eram meros ganchos cômicos. Quando quebra essa regra no diálogo do restaurante versando sobre Madonna e gorjetas e depois com Madsen, o proto-psicopata supremo, dizendo a frase "Ei cachorrinho, vai latir a noite toda ou vai morder?", é a piscadela de olho do diretor para os anos 90, para a modernidade. Modo de dizer que por baixo daquele simulacro todo de macheza e retidão entre bandidos já estivesse plantada ali a semente para uma década amoral, de desilusão e um vazio pop que ecoa até hoje. 

De resto, encarar um filme desse nível é como ouvir pela milésima vez um disco de sua banda favorita. Sabe-se exatamente tudo o que vai acontecer, mas a cada virada de estrofe, a cada refrão, a cada solo de guitarra é como se você subitamente reacendesse a paixão pela coisa e relembrasse o porquê daquele artista ter lhe cativado em primeiro lugar. Em segundo, a confirmação patente: não é todo dia que um cineasta tão faminto pelo ofício, tão vital e descomprometido com qualquer regra comercial a não ser as suas próprias surge na cena, a toma de assalto e súbito, inventa ou reinventa um estilo, não aceita ordens de ninguém e seco, dá o seu recado com toda a atitude do mundo. E agora eu sei exatamente porque eu vi esse filme, logo após ser acordado por um puta raio! Eternamente agradecido, Tarantino.           

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