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segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Lanterna Verde (Green Lantern, EUA, 2011, 114 min.)

   Lanterna Verde, nas histórias em quadrinhos da DC comics, ganhou muita popularidade nos últimos anos graças às sagas escritas por Geoff Johns e desenhadas por artistas como o brasileiro Ivan Reis e Ethan Van Sciver. Nunca foi uma unanimidade, mas tem um séquito fiel de seguidores e eventualmente, é um super-herói que faz parte da Liga da Justiça numa escala de poder logo atrás de Superman, Batman e Mulher-Maravilha. Junte isso ao fato de que graças à rentabilidade dos superhero movies os estúdios estão rindo à toa, e eis aí a oportunidade perfeita para mais um herói ganhar as telas com um tratamento digno, certo?

   Lamento, mas...errado. É triste dizer isso, mas Lanterna Verde é um filme em que todos os elementos estão lá, mas inexplicávelmente nunca decola, e termina deixando um gosto amargo de que não realizou seu potencial.

  Muita gente reclama que o filme conta mais uma história de origem, mas acho isso bobagem. Afinal, como primeiro filme de uma suposta série, o correto mesmo é estabelecer as fundações para que o público possa ficar confortável com o mundo do personagem nas vindouras continuações. A história de Hal Jordan, que segue os passos do falecido pai como piloto de testes e é escolhido pelos Guardiões do Universo como protetor do 'quadrante' que inclui o Planeta Terra, e ganha o anel que lhe dá poderes apenas limitados pela sua vontade ou medo está toda traduzida em celulóide, como deveria ser.

  Mas mesmo com o treino empolgante do novo Lanterna e um vilão interessante, Parallax (vivido na sua forma humana com gosto pelo esquisitíssimo Peter Saarsgard, de Educação), o filme nunca engrena. É claro que a escalação do péssimo Ryan Reynolds para viver o herói foi equivocada, mas é apenas um entre outros muito piores. A mocinha, Carol Ferris, vivida pela maravilhosa Blake Lively (The Town e Gossip Girl), também cumpre um destino estabelecido: o de acompanhante do herói, repetindo falas insossas e funcionando como muleta do roteiro para explicar ou delinear as intenções do herói.

 A verdade é que o grande culpado pelo filme ter saído tão desinteressante é o diretor Martin Campbell, profissional tarimbado, diretor de fôlego que sabe conduzir o aspecto técnico das filmagens, mas não sabe contornar um roteiro ruim. A qualidade do seu filme depende exclusivamente do texto bem-acabado que tiver em mãos. Quando pega um escriba bom, como Haggis em Cassino Royale ou Ted Elliott e Terry Rossio em A Máscara do Zorro, tudo vai que é uma beleza. Agora, se o roteiro for ruim, sai debaixo. O homem tem mão pesada, e o que é pior, aceitou fazer esse filme pura e simplesmente como um emprego, pela grana. Isso fica claro em cada frame de filme. É claro que dinheiro é bom e todo mundo gosta, mas é inadmissível em pleno 2011 um filme desse quilate ser entregue a um operário da indústria, sem a menor afinidade com o personagem, apenas batendo o cartão e dirigindo um filme medíocre com bons efeitos especiais e só.

 Na próxima vez (se houver próxima vez, claro), fica a dica: contratem pessoas que se importem de fato com a história e os personagens, de preferências fãs da HQ original. Ou pelo menos um diretor mais autoral, com intimidade com o material. Já ouviram falar em Edgar Wright? Guillermo Del Toro? Christopher Nolan? Bryan Singer? Matthew Vaughn? Pois é, todos os mencionados são de uma nova geração de diretores em completa sintonia com uma nova audiência, que exige desse tipo de filme mais do que a matinê de sábado protocolar de antigamente. Do jeito que está, Lanterna Verde é o melhor filme de super-herói...dos anos 90. E quem viu as produções da época sabe que isso não é, de modo algum, um elogio.

Planet Dos Macacos - A Origem ( The Rise of The Planet of The Apes, EUA, 2011, 105 min.)

  Como disse a imortal Beatrix Kiddo num filme antes, 'First things first': lamentável o fato dos estúdios em Hollywood não confiarem mais na memória, no discernimento, na inteligência das pessoas. O fato é que certos filmes não precisam de reinício, de reboot, de reimaginação, nada disso: eles são imortais, mantém sua marca indelével na cultura pop e tem milhões de fãs, gente fiel que faz do culto, o ato supremo da cultura pop, seu regozijo ante a tanta porcaria que vem e vai nas temporadas cinematográficas.

  Pois bem. Eis que esse 'Origem' do Planeta dos Macacos não tem nada de origem. Explico. Assim como aconteceu com Batman, James Bond, X-Men e outros, isso aqui é uma borracha total nos acontecimentos de todos os filmes anteriores da série e uma tentativa de reintroduzir o conceito para uma nova platéia, etc, etc.

  Isso é, francamente, blábláblá de executivo de estúdio. Mas enfim. Se esse eterno recomeço já gerou filhos indesejados como o ótimo, mas mal-recebido Superman de Bryan Singer, outros, como Cassino Royale e Batman Begins, são revisões das mais bem-vindas ao cânone dos personagens, adições substanciais que funcionam como versões paralelas ao universo 'oficial' dessas séries.

  E isso é Planeta dos Macacos - A Origem: um filme sensacional, que usa o nosso conhecimento prévio das regras da franquia para jogar essas mesmas numa nova perspectiva, inusitada e muito pertinente aos tempos selvagens que vivemos. O diretor Rupert Wyatt faz um ótimo trabalho ao costurar as discussões tão caras ao universo da série -humanidade, evolução, determinismo- junto com uma surpreendente mescla de estilos que adicionam uma vitalidade insuspeita à obra. Dentro do molde básico de um filme 'Planeta dos Macacos', Wyatt faz um filme de prisão, um drama muito bem ancorado pela atuação do grande John Lithgow e um terceiro ato eletrizante, que confirma o realizador como um diretor de ação de primeira linha.

A história funciona: acompanhamos a ascensão de Caesar, símio usado em experiências para a cura do Mal de Alzheimer pelo cientista Will Rodham (James Franco, cada vez mais sonolento). É claro que tudo leva à um acirramento de ânimos entre macacos e humanos, e eu não vou revelar mais nada aqui sob pena de ser um disseminador de spoilers, coisa que abomino. Destaque para a linda de morrer Freida Pinto como a veterinária ajudante do cientista.

  Ao fim da projeção, o saldo é positivo. Ao mesmo tempo em que fica um dissabor pela total erradicação da história contada nos filmes anteriores e até na refilmagem anterior de Tim Burton, é animador um cineasta com idéias tão boas ter carta branca para executar sua visão num filme comercial. Assim como em X-Men- First Class, a Fox demonstra grande boa-vontade em revisitar, mesmo que desnecessariamente, conceitos ótimos por autores muito competentes. Então fica assim: mesmo sabendo que se trata de uma manobra mercadológica, é honesto, é um ótimo filme e, se der dinheiro, que venham as continuações. Que contradição.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Atração Perigosa (The Town, EUA, 2010, 125 min.)

   Sem brincadeira: que tristeza é ver esse segundo filmaço de Ben Affleck como diretor (aqui também como ator principal) sendo esnobado no Brasil e não ganhando o merecido reconhecimento de crítica e público. Atração Perigosa ('tradução' estapafúrdia do título original, The Town) é um filme policial na tradição de Os Infiltrados e Fogo Contra Fogo, clássicos onde a obstinação de homens dos dois lados da lei é mais intensa que tiroteios ensurdecedores pela cidade (aqui Affleck filma Boston, sua cidade natal que sempre é retratada com muita sensibilidade pelo diretor/ator desde sua parceria com Matt Damon em Gênio Indomável).

   Conta a história de Doug McRay (Affleck), ladrão de bancos que junto á sua gangue promove um verdadeiro arrastão pelos bancos de Boston. Desde muito jovem fazendo parte de um microcosmo criminal que envolve família e amigos de infância (como o contratante vivido pelo falecido Pete Postlethwaite e o parceiro no crime sanguinário e instável interpretado pelo ótimo Jeremy Renner), McRay foi escolhido pelo crime desde seus antepassados. Uma geração inteira de criminosos que não possuem outra escolha a não ser o assalto. Essa idéia familiar de contravenção é tão bem desenvolvida por Affleck quanto as cenas de ação, que explodem na hora certa: magistrais e cruas, lembrando Siegel, Mann, Friedkin.

  Mas o estopim da virada para o jovem ladrão é a paixão por uma de suas vítimas, Claire (Rebecca Hall, belíssima atriz de Vicky Cristina Barcelona). Testemunha e traumatizada por um roubo no qual McRay e seus comparsas foram responsáveis, primeiro cabe ao ladrão monitorá-la e eventualmente matar a garota, caso ela revele saber demais sobre o ocorrido. Mas seguindo a grande tradição do filme policial americano, McRay se afeiçoa por Claire, o que muda todas as relações com a família criminosa, e o coloca em uma posição vulnerável para si mesmo e toda sua gangue. Com o FBI em seu encalço, simbolizado pelo obcecado agente Frawley (Jon Hamm), McRay precisa realizar seu último trabalho para fugir com Claire, abandonar a carreira criminosa e fugir de Boston para não voltar mais.

  É um argumento batido, mas que nas mãos de Affleck parece revitalizado. Uma retomada do policial americano sério, no estilão anos 70, sem fazer concessões. O realizador devolve o cinema de ação ao berço das grandes tragédias familiares, retirando-o da vala comum dos duros-de-matar que infestam os multiplexes. Aqui é cinema adulto, comercial e ao mesmo tempo honesto, que reconhece a capacidade do público em apreciar uma boa trama sem pressa. Em 2007 o jovem diretor fez o sensacional Medo da Verdade, suspense baseado na obra de Dennis Lehane que nem chegou aos cinemas do Brasil. Agora encontrou a mesma sorte com seu The Town. Resta que o público das locadoras descubra esse grande filme, subestimado. Um dos melhores de 2010.

O Poder e a Lei (The Lincoln Lawyer, EUA, 2011, 120 min.)

  Vira e mexe o cinema americano nos presenteia com um bom 'Filme de Advogado', fitas policiais com tramas rocambolescas em que quase sempre o herói se vê enrolado numa teia de contravenções e dilemas morais, precisando resolver, às custas do intelecto e de força bruta, casos criminosos de impossível resolução. Ou quase.

 Felizmente, esse 'O Poder e a Lei' dirigido pelo novato Brad Furman, é de ótima safra. Adaptado do romance 'Advogado de Porta de Cadeia', best-seller de Michael Connely, conta a história de Mick Haller, advogado recém-divorciado, com pinta de bon vivant, que passa os dias em Beverly Hills com o seu motorista dirigindo um Ford Lincoln. Haller é um sujeito de moral dúbia, como a introdução do filme não demora a nos mostrar: fazer acordos com traficantes ou Hell Angels é tão natural para ele quanto tomar um uísque no bar, sempre acompanhado de seu escudeiro fiel, o investigador vivido por William H. Macy.

Eis que vem a Haller um playboy (Ryan Phillippe), acusado de espancar uma garota de programa. Ao mesmo tempo em que está incerto da inocência do rapaz, aceita o caso. E aí todas as ramificações dessa escolha, as reviravoltas muito bem construídas, são desenvolvidas em quase duas horas de ritmo ininterrupto de filme, um ótimo roteiro com uma agilidade que lembra os atuais seriados de tv, onde a peteca nunca pode cair sob pena de desinteresse do público.

 E Matthew McConaughey está perfeito no papel. Passa a credibilidade de rua necessária ao personagem e ao mesmo tempo honra a tradição do advogado bêbado que busca a redenção moral imortalizado por Paul Newman em O Veredito. O elenco de coadjuvantes também ajuda: Marisa Tomei como a ex-esposa de Haller, Ryan Phillippe, William H. Macy, Josh Lucas, Bryan Cranston, Michael Peña...grandes 'character actors', trazendo veracidade e brilho para o filme, mesmo que em pequenas pontas.

  Eu particularmente gosto muito dessa mistura genuinamente americana: o 'Film Noir', diluído numa versão mais 'Pulp' e criminal, somado ao prazer do subgênero que são os 'Filmes de Tribunal'. Pode não ser original, em muitos momentos resvala no clichê, mas não é isso que está em questão aqui. É toda uma subcultura de símbolos e significados que o diretor Brad Furman sabe explorar com maestria: o advogado em conflito moral, o playboy ricaço violento, a ex-esposa fragilizada, o promotor babaca, o amigo do herói bêbado e sempre com a razão...são inúmeros os signos que fazem de um filme desse tipo um deleite para os fãs da linhagem Noir. Eu sou um deles, então recomendo esse excelente filme.

Não Me Abandone Jamais (Never Let Me Go, EUA/UK, 2010, 103 min.)

Não Me Abandone Jamais discute a consciência da mortalidade. O momento da vida em que nos damos conta de que um relacionamento irá acabar, uma pessoa amada irá fatalmente nos deixar e nós mesmos iremos partir. O filme é uma adaptação da obra publicada em 2005 pelo escritor japonês radicado na Inglaterra, Kazuo Ishiguro, e conta a história de três jovens que vivem desde o nascimento confinados num internato situado no interior da Ingleterra. Tommy (Andrew Garfield), Kathy (Carey Mulligan) e Ruth (Keira Knightley) formam um triângulo amoroso incomum, destruido por uma revelação sensacional que muda todo o rumo da história e curiosamente filia a obra ao gênero ficção científica. Não contarei aqui porque metade do choque é a revelação do porquê esses jovens desde cedo convivem tão isolados num ambiente cheio de regras.

 Dirigido de maneira não-emocional, mas poética por Mark Romanek, realizador de Retratos de Uma Obsessão, o filme é um profundo questionamento sobre o quão donos de nosso destino realmente somos. É também a história do amadurecimento de um grupo de amigos e os diferentes rumos emocionais que cada um deles tomam diante um futuro nada promissor. A fotografia de Adam Kimmel acertadamente é toda construída em cima de tons frios, sóbrios, ressaltando o distanciamento emocional do ambiente que cerca os personagens. A trilha sonora de Rachel Portman também é muito discreta, explodindo aqui e ali em momentos de catarse emocional, nunca soando exagerada ou artificial.

  Verdade seja dita, achei um dos filmes mais originais dos últimos tempos. Assisti em cinema no final do ano passado e não gostei, não capturei a idéia principal do filme. Agora revejo em dvd e foi uma espécie de epifania: uma obra imperfeita, mas tão cheia de vida no aspecto técnico, nas atuações corretas e  questionamentos pertinentes que fico me perguntando como não fui arrebatado de primeira por um filme tão melancólico e de extrema beleza como esse. Fica a dica: na dúvida, sempre reveja um filme se você não tem certeza exata daquilo que pensou. A recompensa é muito gratificante. Ótimo filme.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of The Spotless Mind, EUA, 2004, 108 min.)

Ah, a memória. É uma bênção e uma maldição. Simultaneamente, as vezes. Como é bom relembrar um momento que na hora parecia sem importância, mas com as camadas posteriores de lembranças, torna-se intocável, absoluto. Não importa o que foi de fato. Para mim a realidade quase sempre foi reajustada pelo meu senso de espetáculo. Ali, no fundo da minha mente, no meu photoshop sentimental, retoco momentos, esqueço frases equivocadas, acrescento outras que deveria ter dito mas nunca pude; mudo a locação, saturo cores, crio novas despedidas, novos reencontros. Muitas vezes com a mesma pessoa. A musa, a mulher perfeita, que existe por alguns segundos e depois escapa pelos dedos. Desaparece por semanas, meses, anos, décadas. Posso reencontrá-la, mas não posso me desligar da realidade em que vivo...tudo vai ficando cinza, cores esmaecendo, sentimentos cada vez mais mascarados pela dureza das relações- quase sempre sem brilho nenhum, sem faísca...mas e a memória, ela permanece? Existe de maneira autônoma? Quer dizer, de alguma maneira é real?

  Decepção. Dolorida, intensa, estragada, corrosiva, consome meus dias. Ao mesmo tempo em que o pavilhão de memórias boas é construído em velocidade espantosa, as imagens da ruptura vem como um tsunami, uma onda, inexorável, destruidora. Todos os momentos que aconteceram, as frases que foram ditas, as palavras que precisavam ser mas não foram. O fracasso, a derrota, a perda da motivação. O transtorno de ver a musa nas mãos de outro artista (quase sempre medíocre, mas aí vai do interlocutor), o anulamento de todos os pactos, imaginados ou consumados. A falta de esperança. Ainda vale a pena acordar? É tão difícil...algumas coisas servem como sinais de que ainda existe um coração. Filmes. Livros. Revistas. Discos. Assisto um filme, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Como é possível? É exatamente o Google Maps do relacionamento amoroso, o começo (recomeço?) cheio de imprevisibilidades que excitam; o meio trepidante, já avistando o iceberg. E o final destruidor, o desmoronamento do templo, o pacto desfeito; todas as esperanças descarga abaixo. Esse francês, o Gondry, a fofa Winslet, Jim Carrey, meu amigo; e esse roteirista suicida, Kaufman: todos unidos num complô para abaixar minhas defesas, me deixar pelado no meio da rua, todo mundo rindo da minha cara?  "Olha lá! Um Romântico Idiota! Peguem-no!"

  Não. A verdade é mais desinteressante e menos reveladora. A real é que todos, TODOS nós temos momentos de relação amorosa que gostaríamos de reviver e outros que imploramos para serem sumariamente deletados da nossa memória. Hum, mais precisamente: existem pessoas que gostaríamos de trazer de volta e outras que caíssem, sem piedade, no calabouço do esquecimento, devoradas pelos crocodilos da memória e regurgitadas de volta à mediocridade. Mas, espera ai, se eu fizer isso, partes importantes da minha biografia serão extirpadas. E no lugar delas entra exatamente o quê? Só sucesso. Só vitória? Branco Total? Que coisa mais chata. Vida de brinquedo.

  Olha, sinceramente, doutor, obrigado. Eu quero minhas memórias de volta: quero reviver tudo do jeito que foi. Ou melhor: esse Lego mental que está aqui dentro pertence única e exclusivamente à mim, portanto quer saber? A única alternativa plausível para essa bagunça toda é procurar outra musa, olhar para frente e fingir que eventualmente está tudo bem, afinal, cada esquina virada é uma nova chance e...ah, que porcaria. Não, não é nada disso.    

  A coisa toda é: quero reencontrar minha musa. A mesma musa. Mas tanto eu quanto ela, revitalizados. Nada de segunda chance ou recomeço, isso é coisa de livro ruim de auto-ajuda (um pleonasmo, por favor). Eu quero o primeiro encontro. Com a mesma pessoa, a mesma mulher. A mesma musa. Mas um primeiro, não um segundo encontro. Nada aconteceu. Uma folha em branco, um começo, não um novo começo.

 E Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças é isso: o cinema usando o seu melhor para nos dizer o essencial: Pare de se enganar! É impossível concorrer com o passado, nem tenta esquecer, nem tenta dar reboot. Vai dormir e espera aquele sentimento péssimo da noite passada ir embora. Você vai acordar meio estranho, sem lembrar de muita coisa. E aí você levanta, toma café, banho, vai trabalhar, pega o ônibus, vai à pé, ou de carro...encontra gente velha, gente nova.

  E tudo pode mudar num encontro, ou não. Talvez eu nem me lembre, mas acho difícil. Minha memória é muito boa. Ah, a memória. É uma bênção e uma maldição. Simultaneamente, as vezes. Como é bom relembrar um momento que na hora parecia sem importância, mas com as camadas posteriores de lembranças, torna-se intocável, absoluto. Não importa o que foi de fato. Para mim a realidade quase sempre foi reajustada pelo meu senso de espetáculo. Ali, no fundo da minha mente, no meu photoshop sentimental, retoco momentos, esqueço frases equivocadas, acrescento outras que deveria ter dito mas nunca pude; mudo a locação, saturo cores, crio novas despedidas, novos reencontros. Muitas vezes com a mesma pessoa. A musa, a mulher perfeita, que existe por alguns seg...

Fitzcarraldo (Fitzcarraldo, ALE/PE, 1981, 157 min.)

Fitzcarraldo é uma ode à megalomania. Um monumento ao transe hipnótico que toma a alma humana quando esta percebe-se diante da beleza natural inebriante, aquela que os olhos vêem mas que o intelecto ainda custa processar. O Rei da Borracha, Brian S. Fitzgerald (Klaus Kinski, confundindo-se com o personagem e elevando a insanidade do filme à patamares inalcançáveis), chamado de Fitzcarraldo pelos índios, é maníaco por Enrico Caruso e quer construir uma ópera em Iquitos, em plena selva, mesmo que para isso tenha que passar um navio por cima de uma montanha, à custa de vidas humanas e muito sofrimento.

 Dirigido por Werner Herzog, Fitzcarraldo tem os traços inconfundíveis do diretor germânico: culto ao heroísmo individual, clima hipnótico e um protagonista excêntrico, disposto a enfrentar as intempéries da natureza para conquistar um objetivo por vezes absurdo, mas ao mesmo tempo demasiadamente humano. O colonizador que chega com a idéia fixa de transformar o ambiente a qualquer custo mas não faz idéia do preço que vai pagar por isto é tambem a história da realização do filme. Tudo o que se vê na tela é fruto do gênio insano de Herzog, que não mediu esforços para a realização do caos absoluto: a sequência em que o navio de Fitzcarraldo é transportado montanha acima por índios nativos. Consta que Kinski e Herzog quase saíram no braço, e a filmagem teve de ser refeita várias vezes.

  É o documento de gente fazendo arte sem medir consequências e resulta num filme que sempre vai ser assombroso, seja pela sua beleza autêntica ou pelo seu retrato cru do que a obsessão é capaz de fazer quando toma conta. Herzog viria a explorar o tema em incontáveis filmes depois, mas poucos com a eficiência de Fitzcarraldo.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A Doce Vida (La Dolce Vita, ITA/FRA, 1960, 174 min.)

  Aproveitando a inciativa da Folha de S.Paulo, que acaba de lançar uma coleção dedicada ao cinema europeu, vale a pena dedicar algumas palavras ao marco cinematográfico que inicia essa antologia de filmes e é considerada até hoje, um dos destaques da filmografia do realizador italiano Federico Fellini. A Doce Vida é uma obra atemporal, cruel e honesta em suas observações sobre os impulsos intrinsecos do ser humano.

  É interessante notar o quão atual A Doce Vida é em relação à exploração das celebridades pela mídia e os paparazzi, a busca incansável pelo hedonismo e a insatisfação causada por essa busca, o enfastio do prazer ininterrupto...está tudo estampado no rosto de Marcello Mastroianni, o ator-fetiche de Fellini, aqui em um dos grandes desempenhos de sua carreira como repórter sensacionalista, de terceiro escalão, fazendo vida da exploração de celebridades e fenômenos religiosos de origem duvidosa. Abandonando a fase neo-realista marcante em boa parte de sua carreira, Fellini abraça aqui o simbolismo com voracidade, entregando uma narrativa inovadora para os padrões da época: acompanhamos a trajetória do repórter vivido por Mastroianni em blocos autônomos, que ilustram brilhantemente a ciranda de anseios e sentimentos de um grupo de personagens.

 Tolstói dizia que um escritor que escrevesse sobre sua aldeia estaria retratando o mundo. Fellini, que havia sido jornalista, fez com seus roteiristas colaboradores um roteiro que é um painel sobre Roma entrando nos anos 60. Ou melhor, uma antevisão do mundo nos anos 60. Não cabe aqui contar ou revelar momentos-chave do filme, sob influência de retirar o impacto de tais sequências, mas está tudo aqui: desde o deslumbramento do homem com a beleza pura, "fosforescente" (palavras de Fellini ao descrevê-la) de Anita Ekberg na sequência monumental na Fontana Di Trevi, passando pelo vazio existencial desnudado pelo amigo intelectual do repórter, e chegando ao desencanto e ao cinismo abraçados pelo personagem de Mastroianni e simbolizados no final do filme. A obra transcende a condição de mero espetáculo de cinema. Visto hoje, tem muito mais os contornos de um evento, intenso e pessoal, bem ao gosto do diretor.

  Fica claro que "A Doce Vida" vai se tornar irremediavelmente amarga, como o tempo demostrou, mas nem por isso menos poética. Algumas pessoas conseguem extrair o melhor de uma vida mesmo depois que a festa acaba, e se Fellini viu a beleza melancólica disso, quem somos nós para discordar?


sábado, 6 de agosto de 2011

Lenny (Lenny, EUA, 1974, 111 min.)

  Lenny Bruce era um iconoclasta. Briguento, despudorado, desbocado, provocador e ao mesmo tempo estranhamente afável... uma personalidade intrigante que só poderia render um filme bom como esse Lenny, filme de 1974 que só agora é lançado em dvd pela distribuidora Versátil no Brasil. Dirigido por Bob Fosse, diretor de obras como Cabaret e All That Jazz, o filme narra em tom documental parte da vida conturbada de um dos pioneiros do stand-up comedy nos EUA, cheia de reviravoltas e melancólica, haja visto que Lenny Bruce disparava absurdos em pleno palco em idos de 1960. Dá para imaginar o caos que o homem causou na ainda moralista América dos tempos de Kennedy.

  Pausa e aplauso para Dustin Hoffman, que aqui entrega uma de suas melhores atuações no papel do comediante. Alternando no início do filme momentos de euforia com outros da mais pura introspecção, Hoffman traz uma humanidade insuspeita para o personagem na primeira metade do filme. Quando Lenny começa a enfrentar o inferno dos tribunais e o vício em heroína, mais uma vez o ator surpreende ao retratar o comediante com vulnerabilidade e ao mesmo tempo, cada vez mais paranóico e defensivo, sempre procurando alvos e já dando vez a uma loucura melancólica, já que devido ao seu comportamento intempestivo, Lenny começa a ser ignorado e deixado de lado por produtores e donos de clubes de comédia por todo o país. De qualquer forma, é mais uma atuação imaculada de Hoffman, que fez dos anos 70 seu período mais fértil de manifestação criativa nas telas.

  O que a obra faz questão de deixar claro desde o início é que Lenny Bruce sempre foi um inconformado com a hipocrisia do ser humano. Quando se casa com uma belíssima stripper ( a estonteante Valerie Perrine, melhor atriz em Cannes pelo papel), vai apresentá-la à sua mãe, que não faz idéia da profissão que a futura nora exerce. Mas contanto que a mentira prevaleça, tudo é permitido. Quando a polícia o prende porque em um show proferiu a expressão cocksucker ( aqui algo próximo e abrandado ao termo 'boquete'), Lenny volta no próximo show com piadas muito mais ofensivas e de baixo calão, mas sem proferir uma única vez a mencionada palavra, e a polícia permite que o show prossiga. Como não era homem de concessões e sempre muito afiado nas observações do cotidiano, conforme o cerco social vai se instaurando e censurando sua persona, logo a verve cômica vai sendo deixada de lado em favor de críticas intermináveis ao sistema como um todo: religião, política, sociedade...nada ficava intacto ante a metralhadora giratória de Lenny Bruce.

  Seu fim foi triste como sua luta vazia nos palcos, inócua: morreu aos 40 anos, vítima de uma overdose de drogas. Se fica a idéia amarga de um homem que fez do riso amargo sua única válvula de escape contra um mundo que não suportava e vice-versa, também é possível ver aí um tipo desbocado e saudável em falta nos tempos atuais. Algumas de suas tiradas eram realmente observações acuradas sobre o cotidiano, e não é  difícil vê-lo como um poderoso cronista, um catador do nosso lixo moral. Como o próprio bem define à certa altura no filme: " Ei, isso não é um trabalho. Isso é necrofilia! Se as guerras acabassem e as pessoas fossem sinceras eu jamais estaria fazendo essa porcaria...eu me aproveito de tudo isso também!"

Um tipo de sinceridade que nunca estamos dispostos a encarar, não é mesmo? Grande filme!

Super 8 (Super 8, EUA, 2011, 103 min.)

  Há tempos um filme tão bom não honrava o título de clássico-das-matinês-de-sábado; e meus amigos, essa pequena gema chamada Super 8 é fabuloso, a melhor obra de Spielberg que Spielberg não fez. Produto da mente fértil de J.J.Abrams, o novo midas da tv e do cinema que até aqui ainda não fez um singelo filme ruim ( a saber: seu curriculo inclui a criação das séries Alias, Fringe, Lost e a direção dos filmes Missão Impossível 3 e o reboot de Star Trek em 2009), Super 8 é uma declaração de amor ao cinema pop dos anos 80, notadamente obras como Os Goonies, Conta Comigo e Contatos Imediatos do Terceiro Grau. Ao mesmo tempo, Abrams mantém o seu estilo narrativo intacto, e mais uma vez constrói um filme que vai lentamente jogando informações que de início parecem desconexas, mas logo montam um quebra-cabeça espetacular, nos conduzindo a um clímax surpreendente.

 O que faz a diferença em Super 8 é acompanharmos a história de um alienígena ameaçando um pequeno condado pelos olhos de um grupo de crianças. Assim como em outra produção com seu dedo, Cloverfield, Abrams traz o foco para as pessoas e relações humanas que aparentemente passam despercebidas em outras produções do gênero. É uma grande lição até mesmo para seu produtor Spielberg, que em Guerra dos Mundos tentou conciliar destruição em massa e relações familiares, mas parece ter perdido a mão para equilibrar as duas coisas e entregou um filme irregular. Abrams é expert em roteiro para a tv, e sabe muito bem que não basta um grande orçamento e cenas de ação para capturar a atenção da audiência: a trama tem de se desenvolver com agilidade, os personagens devem ser interessantes, e os diálogos tem que ser obrigatoriamente bons.

 E isso Super 8 entrega, com sobras. Conta a história de Joe Lamb (o estreante Joel Courtney), garoto que vive em um pequeno condado e acaba de passar por uma tragédia familiar: sua mãe morreu num terrível acidente, enquanto sua relação com o pai vai lentamente esmorecendo. Paralelemente, a grande diversão do menino é, junto com seus amigos, filmar uma fita de zumbi, com uma câmera Super 8. As reuniões para a filmagem são divertidíssimas, e respondem pelo coração do filme. Até que numa noite, filmando uma cena, um trem passando por perto das filmagens descarrilha e causa um enorme acidente (filmado com um senso de espetáculo insuspeito por Abrams, lembrando o desastre de avião da abertura de Lost), desencadeando a fuga de um monstro encarcerado em um dos containers carregados pelo trem. Os militares não demoram à chegar, e logo os pequenos cineastas percebem que filmaram muito mais que um filme amador.

 É incrível observar a quantidade de metáforas que Super 8 oferece numa primeira sessão. A mais óbvia, é a do filme dentro do filme rodado pelos garotos: é como se Abrams admitisse que ele mesmo, de primeira, é uma criança fascinada pela descoberta de um enquadramento, de uma paisagem satisfatória para filmar, ou até uma atuação realmente boa. Esse retorno à uma visão infantil que é a quintessência do cinema Spielbergueriano está lá em cada frame do filme.

 Outra idéia sempre presente no cânone do cinema fantástico é a do alienígena que traz a dissolução do ambiente humano, mas ao mesmo tempo se torna o responsável pela união de diferentes núcleos da trama. É como se um desconhecido pudesse chamar em nós o nosso melhor, o poder de unir, de superar diferenças e agirmos em unidade, ignorando o passado de cada pessoa. Esse tema também está presente em Super 8, e é desenvolvido de maneira soberba: há tempos um grupo de crianças não soa tão natural, tão alegre no espírito de molecagem e vivência. É infância de verdade, retratada com naturalidade.

 Mas isso já é aprofundar demais a análise. O que importa mesmo é que Super 8 é um filme-pipoca perfeito, daqueles que hoje já não fazem mais. Um filme onde o senso de aventura prevalece sobre a ação em si. Ao final desse filme fiquei pensando o que J.J.Abrams faria com um filme de super-herói...acho que seria fabuloso, um estrago. Se bem que enquanto sua mente iluminada continuar criando gemas pop como essa, nós do lado de cá não podemos pedir muito. O trabalho do homem é surpreender, criar conceitos originais ao mesmo tempo em que honra o passado do cinema popular e seus grandes criadores. Super 8 é mais um passo acertado para no futuro Abrams se tornar referência para novos realizadores.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Professora sem Classe (Bad Teacher, EUA, 2011, 85 min.)

   Comédia é, em essência, uma coisa complicada. O que nos dias atuais é vendido como comédia em prateleiras de locadora e multiplexes raramente pode ser classificado como bom cinema. Ou melhor, o que faz uma comédia genuinamente engraçada? Na opinião desse humilde escriba, três fatores essenciais que não podem falhar: o elenco tem de ser carismático, possuir o tão falado timing de comédia, a química. O roteiro tem de ser muito bem escrito, sempre deixando espaço para o improviso no set e subvertendo fórmulas, surpreendendo. E a direção, capitaneando esses talentos, escolhendo os melhores takes, as melhores gags, excluindo outras que podem atrapalhar o ritmo da cena, tudo isso já no estágio final, na mesa de edição.

  O ponto é: como que um filme roteirizado pelos escribas de The Office, dirigido por Jake Kasdan e protagonizado por Cameron Diaz pode dar tão errado como esse Professora sem Classe?
Tudo no lugar para um hit do quilate de Escola do Rock ou Quem Vai Ficar Com Mary, e no entanto o que temos aqui são quase duas horas de situações batidas, sem risadas, sem inspiração. Dirigido, escrito e editado por verdadeiros burocratas do ofício.

 Cameron Diaz interpreta ela mesma: a gostosa que tem certeza que é gostosa, mas aqui com um pequeno 'twist'. Ela é desbocada, depravada e sem qualquer traço de ética. Professora do primário, sua vida se divide entre dar uns tragos de maconha e bolar planos mirabolantes para conseguir dinheiro. Grana que pagará seus implantes de silicone. Sua meta de vida.  O passaporte para torná-la uma mulher socialmente aceitável e também ajudá-la a conquistar um trouxa que lhe dê mais dinheiro. Para quê, nunca fica claro.

  É uma personagem ingrata, e Cameron despacha a coisa toda sem paixão. Suas relações com a professora rival gostosa, o professor certinho que é seu sonho de consumo e o desleixado que logo de cara saca o tipo de pessoa que ela é nunca engrenam. E aí é difícil dizer de quem é a culpa. Como disse no início, esse tipo de filme é um esforço conjunto, e aqui parece que todo mundo só apareceu mesmo para pegar um cheque.

  De qualquer forma é triste ver gente talentosa exigindo tão pouco de si mesmo. Todo mundo envolvido aqui já esteve melhor em filmes melhores, mas não é isso que mais me assustou ao final desse filme. O que me espanta é a idéia de que esse é o tipo de fita que entope a programação de cinemas de shopping, locadoras e tv à cabo e não raro, se tornam sucessos, graças à condescendência de um público médio que não sabe direito o que quer e fica à mercê desse tipo de enlatado, feito exclusivamente para ser consumido e esquecido na primeira mordida de pizza após a sessão. Tudo bem, se divertir é legal, mas será que é diversão mesmo ou é só perda de tempo?

Assim como sua personagem no filme faz de tudo para conseguir dinheiro visando implantes de silicone, fica aqui a dica, Cameron Diaz: use o salário desse filme e contrate um novo agente, um que goste realmente de você!  

Hesher (Hesher, EUA, 2011, 105 min.)

    Eu não fazia a mínima idéia do que esperar desse filme, Hesher. Digo, vem do circuito alternativo americano (o famigerado 'indie', que hoje é menos cinema independente e mais laboratório dos grandes estúdios) com boas críticas, elenco ótimo (Joseph Gordon-Levitt, Rainn Wilson e a recente academy award e prata da casa Natalie Portman), diretor estreante (Spencer Susser), mas razoavelmente conhecido no circuito dos festivais e roteiro assinado em parceria pelo próprio mais o diretor do filmaço australiano Reino Animal, David Michôd. Sem falar que é o tipo de filme que no Brasil, só se ganhar prêmio, senão...boa sorte na locadora. Então é aquela coisa: a gente vai ver esperando coisa boa, mas nunca se sabe.

   Eis que Hesher é espetacular. Um drama bem intencionado, uma história bem ao gosto americano: um coming-of-age movie, aquelas fitas que retratam o amadurecimento do protagonista ante momentos difíceis, mas definidores de caráter. É também um filme anti-preconceito potente e inesperado, pois a figura central, o desajustado Hesher, interpretado com gosto e todos os maneirismos à que tem direito por Gordon-Levitt, é o protótipo da figura desprezada pela sociedade: o 'metaleiro', rude, tosco, grosseiro, vândalo e sexista. Óbvio que desde a primeira cena já sabemos que o objetivo da obra é justamente desmistificar a figura e humanizá-la, mas seria clichê demais mostrar que por trás de uma cara de mau e tatuagens reside um sujeito triste, mas com coração de ouro. O roteiro pega o caminho mais difícil para definir o personagem, e funciona.

  Mas Hesher, o filme, é mesmo a história do menino T.J. (o excelente garoto Devin Brochu), que após a perda traumática da mãe passa a viver na casa da avó, que está muito doente mas não deixa de ser carinhosa e prestativa, e seu pai ,Forney (vivido pelo eterno Dwight do seriado The Office, Rainn Wilson, aqui em registro dramático provando que comediantes são sempre excelentes atores dramáticos), que desde a morte da esposa vive no inferno dos anti-depressivos entre o sofá e cama, praticamente um zumbi sem o menor poder de comando sobre seu filho, sobre a vida, enfim.

  O destino de T.J. é acordar, ir para a escola e diariamente ser humilhado por valentões. Essa rotina parece nunca mudar até que um dia o garoto esbarra em Hesher, o clássico metaleiro-bêbado-desbocado-pronto-para-brigar. Nasce aí uma estranha cumplicidade entre os dois, mas nada muito próximo de uma amizade convencional. Na verdade Hesher entra na família do garoto mais por uma passividade do pai e da avó, que permitem a entrada do estranho apenas por falta de força para reagir. Ainda há uma subtrama em que T.J. se apaixona por uma caixa de supermercado (Portman, em mais um desempenho notável), insatisfeita e saindo da adolescência, já pronta para se tornar uma mulher infeliz.

  Todos esses personagens sem rumo convergem para um desenlace levado muito à sério pelo diretor Spencer , que não cede à tentação de transformar o filme em um manual de auto-ajuda ou num espetáculo de redenção. Em Hesher, as pessoas cometem erros com consequências que perpassam as duas horas regulamentres de uma sessão de cinema. A dor do menino e seu pai não é banalizada. Hesher é um personagem do qual não se sabe muito, mas logo fica claro que sua suposta crueza no trato com o mundo nada mais é que uma defesa. Em momentos distintos, fica claro que sua opção de vida pode ter um motivo tão grave que nunca, ninguém, jamais saberá.

  É admirável um filme abordar a 'vida real' com tanta honestidade, sem oferecer soluções fáceis ou mensagens edificantes. Se há uma grande idéia em Hesher, é a do respeito ao próximo. Muitas vezes pensamos que temos o maior problema do mundo, que nenhuma vida pode ser pior que a nossa. Inúmeras vezes contamos aquilo que perdemos, e não prestamos atenção naquilo que ficou ali, ao nosso lado, esperando o devido reconhecimento. Felizmente, se olharmos com olhos de criança, ainda é possível mudar. Um filme puro, coisa rara nos dias de cinismo que correm. Não é pouco.